O AVESSO

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É como ter dois de mim. Um preso dentro da própria cabeça e o outro solto, mas ainda assim preso. Imagine você dirigir vendado, mas vendo ao mesmo tempo. Mesmo que por mínimos segundos. Então, imagine você dirigindo um carro o qual você não guia, um carro com vontade própria. Pois é. Você chegou quase perto da noção do que é ter domínio de algo que não é dominado.

Para mim, transformado, é normal matar, é normal rosnar, é normal querer sentir sangue nas presas. Sangue fresco. É tão normal quanto respirar. Como num sonho, incontrolável, tenho vontades absurdas, desejos sangrentos. Estou vendo, tocando, respirando, ouvindo, farejando, com o corpo da besta. Ela sou eu quando humano, eu sou ela quando fera.

Tenho lembranças de Lucas, da minha vida de quando humano, mas quanto mais eu vou lembrando, mais esqueço. Como quando você está em um sonho, e acorda abruptamente... o sonho está fresco em sua cabeça, porém quanto mais você tenta lembrar dele mais esquece. Ele vai se apagando. Se desfazendo.

Eu vejo o que a fera vê, pelo menos com racionalidade. Mas a visão é parca e difusa, as vontades do monstro eclipsando toda e qualquer sanidade, e aí, momentaneamente, sou a fera. Me vejo sentado, às moléculas de poeira tocando cada parte do meu grande corpo; eu sinto os cheiros, em milhares de linhas, todos se desprendendo de algo - do assoalho do chão, da formiga entre as tábuas, levando um resíduo de biscoito, dos ácaros abaixo da cama, trilhões deles, juntos, o odor de cada roupa, de cada prego da casa, de cada objeto em um raio de um quilômetro. E rápido, sem aviso, sou sugado para dentro, para as trevas e novamente vejo o que a fera vê. O que ela quer ver. Ela quer se soltar e isso me assusta a ponto de ordenar a ela para que não o faça. Contrariada, ela fica quieta. Essa ordem lúcida me assusta, mas logo, como quando você está pensando em algo, lembra de outra coisa, mais uma e outra, acabando assim por esquecer qual pensamento estava tendo, acabo esquecendo esse fato mesmo que ele faça eu me assustar a ponto de fera e eu compartilharmos o mesmo sentimento de surpresa. Tento lembrar do que eu fiz para ter me causado tal espanto, mas não vem à mente pois são os pensamentos de duas cabeças em conflitos. Se em uma acontece isso, imagine em duas, com uma delas sendo irracional e nada saudável.

Então salto novamente para o corpo da fera, vejo todo o quarto com outros olhos, é tudo cinza e brilhante... Vejo as marcas de mãos por toda a parte, há milhões de manchas de pés no piso, noto um local na cama com uma forte luz e percebo ser onde estive deitado mais cedo, o calor do meu corpo ainda vivo nos olhos de lobo. Não há escuridão, nada é escuro. Nada tem cor. Nada escapa da minha visão, diferente do foco humano, que vai somente em um ponto, esse o foco pega todo o campo de visão, não deixando nada escapar e com um acréscimo de um assustador zoom em objetos muito pequenos. A fera me puxa para dentro e 10 segundos depois esqueço que posso estar no controle e me contento em ficar nas trevas da minha mente. Da nossa mente. E então, ao longe, vejo a porta abrir e o rosto de Lucas surgir tímido. E então tudo se sacode dentro da cabeça da fera... Quer morte. Quer matá-lo. Quer sua pele macia em nossos dentes. Nossas garras em sua barriga, arrancando ossos, vísceras, nós queremos matar ele. Ela quer. Não. Sinto desejo, sinto vontade. Uma vontade enlouquecedora. Sim, concordamos que queremos ele sem vida, estraçalhado.

Bam! Não queremos mais, e para minha surpresa, a qual me faz ter um momentâneo momento de total perplexidade, noto que a fera concorda e não querer machucar meu lucas. É ela quem não quer. Ela me censura, solta um ganido. Mas, eu estando na cabeça dela, quero a morte dele... O avesso de tudo.

Estamos misturando nossas vontades e sentimentos. Então novamente bato o pé e ordeno para que ela ataque, pois é normal matar. É normal atacar. E eu quero atacar. Mas ela não quer. Nós, sinto ser nós, não queremos. Lucas entra e eu pulo para fora. Sou a fera por completo, mas com vontades de matar... de ter sangue... Não. Sou eu mesmo, sou Petros. Sou ele, sendo a fera. Que bagunça. Ao ver ele eu rosno... Afinal, eu quero ver ele morto.

Meu Namorado É Um Lobisomem (Primeira Parte Finalizada. Pausado)Onde histórias criam vida. Descubra agora