LIVRE

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As árvores passam por mim rápido, não o suficiente para serem um borrão, mas o bastante no patamar "50km/h". Salto, desvio de árvores caídas — sem controlar a velocidade, paro de chofre e escorrego nas folhas ao chão até cair num riacho cheio de pedras. Sinto minha perna ferida, mas nem me importo. A água bate na altura da minha barriga e está gélida. Sorrindo, jogo água para o alto agitando-a para todos os lados, paro de repente e noto o silêncio na floresta. Os pássaros pararam de cantar, os animais (os sinto longe, fugindo) parecem amedrontados tomando distância o mais rápido possível. Com medo de mim. É bom pôr medo, gosto disso, ser a ameaça faz a fera rir contente. Coloco meu peso sobre as pernas dobrando-as levemente, depois empurro o chão e dou um pulo alto de 180 graus, puxo o punho direito para trás e miro numa árvore. Ela se parte com meu golpe e eu aterrizo de punho no chão de forma teatral. Ouço a árvore cair mas há uns 300 metros atrás porque já estou correndo com o vento assoviando em meus ouvidos. Como se fosse um jogador de Futebol americano, saio dando golpes com o ombro em Cedros, Pinheiros e outras árvores. É divertido quebrar algo.

Os dias antes da Lua são como uma prisão para o que está dentro de mim, desde o dia o qual fui mordido foi meio que gerado uma segunda personalidade em mim. As vezes sonho com ela, feroz, grande e ameaçadora. Nos sonhos ela tenta sempre me matar, mas consigo domar ela, controlá-la e pôr a mesma nos eixos. Certa noite, dormindo ao lado de Lucas, acordei feroz, querendo matar, só matar, apenas isso... como se fosse natural matar. Eu estava em cima de Lucas, com as mãos em sua garganta, não a apertando, somente querendo. Claro que ele se assustara, falou meu nome e com isso vi a razão. Conversamos sobre isso, com ele anotando tudo que eu falava, foi desse dia que concluimos que sim, havia outra personalidade dentro de mim. A sedenta por morte, a fera. Ela não vinha só nas noites de lua cheia, Ela vivia dentro de mim, vendo o que eu via, sentindo o que eu sentia... vivendo comigo.

Paro do nada quando sinto a brisa do mar à minha frente. Eu correra demais, estava há uns bons 100km na direção errada. Retorno por onde vim e em 10 minutos chego à rodovia que leva até o residencial. Calço meus tênis e resolvo ir correndo como uma pessoa normal. Noto que minha roupa está em péssimo estado assim como meu cabelo. Faço uma careta e mantenho a pose de que nada acontecera quando chego ao portão do residencial. Comprimento o porteiro que pede o cartão para entrar, o mostro e ele sorri gentil. Atraio alguns olhares tortos ao passar. Não gosto muito daquele lugar para pessoas com classe um pouco alta, a maioria é esnobe demais, porém Lucas o acha perfeito por conta de ser circundado por um bosque enorme que se estende até o rio Nostro, cortando-o no meio. Depois do rio é a Floresta Estadual Sant Helena, igual a do famoso vulcão. O bosque é um lugar perfeito para o caso de as correntes falharem, pois sempre que isso acontece eu vou, guiado pelos instintos da fera, para a mata e só retorno de manhã cedo, guiado, por mim talvez, para casa. A parte humana consciente me leva para casa e toma os devidos cuidados para não ser vista por ninguém.

Como se existisse uma rota, como nessas que traçamos em nossos app de mapas dos celulares e ou em um GPS, sinto o cheiro de Lucas. É como nos filmes, um enorme e visível rastro deixado pelo seu cheiro. Rio e apresso o passo. Cumprimento Cíntia, que brinca sobre eu ter sido pisoteado por uma manada de búfalos e logo chego em casa. Antes paro com a mão na maçaneta e ouço ao longe, uns 2km, um carro se chocando com outro. Daí em diante, tudo explode em mim — paladar/audição/tato/olfato/visão —, como se fosse o mundo estivesse em aniquilação. Logo, rápido, minha vista fica sem cor e os sons se intensificam. E os odores fazem meu estômago vazio se revirar.

Entro e caio pra dentro do hall, coloco as mãos nos ouvidos, mas é impossível abafar os sons horríveis. Parecem bombas atômicas os passos de um garotinho na calçada e um furacão o vento do ventilador da casa de fronte à nossa, que fica há uns bons 30 metros. É o corpo humano não suportando o lobo dentro de mim, não aguentando seus sentidos voláteis para uma pessoa; para mim. É assim as vezes, principalmente horas antes da lua.

Ouço a voz alarmada de Lucas: Petros, o que houve?!

Sinto ele me tocar antes de ter feito. As moléculas no ar dando passagem aos seus dedos que vão em direção à minha pele. Tudo congela, tudo fica lento. Sinto sangue sair dos meus ouvidos, sinto meu nariz sangrar, sinto meu estômago apertar forte. Estou um local plano e enorme, com um chão preto onde águas frias tocam a altura dos meus pés. Tudo ao meu redor é escuro, mas à cima há uma espécie de luz, como se eu estivesse em um cômodo muito enorme com uma luz iluminando bem acima de mim.

Ando. Caminho procurando algo, pois alí não há nada na gigantesca planície. Conforme eu ande a luz a cima de mim, cintilante, me acompanha, mas ilumina o suficiente para eu ver o quê está à 5 metros de distância. Então, ao longe, outra luz é acesa... mas está longe. Corro para ela e de início vejo uma caixa toda em vidro com algo dentro. Olho pra cima notando uma mini Lua cheia, como se fosse uma bola de cristal, planando calmamente e girando em sentido horário. Encolhido ao canto norte da caixa, uma bola de pelos alaranjados, há algo e eu sei o que é a julgar pela respiração lenta, mas constante. O vidro reflete a luz a cima de mim e vejo que também se trata de uma mine lua. Toco o vidro e ao fazer isso, o amontoado de pelos se levanta e revela uma criatura alta e de olhos amarelos. Ele toca, rápido, o local onde está minha mão, — ao fazer isso, sua lua vai aumentando de tamanho de forma rápida. Ele me encara e reparo que há hostilidade em seu olhar. Seu punho poderoso soca o vidro e eu me assusto. Soca mais uma vez e mais. A lua está gigantesca e o vidro começa a rachar. Olho pra cima e vejo que a lua esmagará nós dois caso continue se expandindo sem sair do lugar. Então o vidro quebra e a fera fica livre. Tenta me atacar mas sou puxado de forma rápida daquele lugar escuro. Come se fosse pescado por um navio pesqueiro, sou puxado para cima e ouço uma voz.

— PEEEEEEEEEEEETROOOOOOOS. FAAAAAAAAALAAAAAA COOOOOOOOMIIIIIGOOOOOOOO! PEEEEEEEEEEEETROOOOÔS.

A boca de Lucas se move lenta e demora o som a se propagar por todo o cômodo. Então, tudo volta ao normal, meu corpo combate os super sentidos do Lobo.

Quando percebo, estou com a cabeça nas coxas de Lucas e ele faz cafuné nela de forma desajeitada. Lucas: O que aconteceu, amor? — pergunta ele choroso.

Eu arfo: Essa droga de lobo, querendo me acabar. Parece que fica irritada quando o privo... quando o censuro.

Lucas: Seus ouvidos... — diz ele olhando o sangue.

Eu pego sua mão e dou um beijo: Preocupa não, isso é normal. A lua parece estar mais poderosa esse mês.

Lucas: Deve ser por causa do cometa que se aproxima da terra. Você está bem? — pergunta ainda acariciando-me os cabelos... depois vai para a barba.

Eu: Tô sim. Vim correndo pela mata.

Expliquei os rasgos na roupa e a sujeira. Ele riu e deu um beijo na minha testa: Seu menino lobo travesso. Correndo pela mata.

Eu rio: Fiz uns 100 k/h. Te juro.

Não sei o que é, mas sinto algo estranho dentro de mim. Algo mais estranho que essas coisas de lobo. Escondo isso de Lucas e levanto para beijar ele e abraçar meu pequeno. Fosse o que fosse, a gente superaria.

A lua de hoje está próxima, sinto, assim como o entardecer inevitável, ela vem e trará consigo a minha maldição.

Meu Namorado É Um Lobisomem (Primeira Parte Finalizada. Pausado)Onde histórias criam vida. Descubra agora