ATO 30

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Quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha.

Quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha

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    Chegar até aqui não foi fácil.

A impressão que tenho é que já vivi muito mais anos do que tenho. Mas agora as coisas estão caminhando rápido, ou para um amargo fim, ou para um próspero recomeço. Minhas escolhas e acões levaram-me a isso. Meu avô estaria orgulhoso.

Olhando a vista aqui da sacada das instalações de Audrey, nessa manhã agradável, vejo uma cidade cheio de histórias, uma ilha esquecida, e um amor aprisionado, abaixo de mim. Assim como eles, eu também tenho histórias para contar, e o melhor modo de prestigiar minha trajetória é lembrando dela.

Lembro de uma casa de madeira no meio do nada, envolto por neve e montanhas. Um menino de oito anos morava ali com seu avô, que saía bravamente todas as manhãs para caçar veados e cervos, não antes de tomar uma boa dose de vinho para aquecer. Lembro do líquido caindo na taça enquanto o garoto dormia, e a porta rangendo quando o velho saía. Ele sempre trouxe grandes refeições para a casa, mas o desgraçado morrera por tão pouco!

No único dia em que o garoto fora caçar com ele, um javali perfurou suas entranhas e o arremessou a alguns metros dele. Se o velhote tivesse bebido menos, poderia ter notado, ou se fosse mais jovem e mais ágil, poderia ter desviado. O menino atravessou a floresta para procurar ajuda, mas a vila mais próxima não chegava e a neve já atingia seu joelho. Que dia complicado para ele, que parara de correr, olhava para trás, para os lados, mas não encontrava uma forma de resolver aquele dilema. Um javali lhe perfurando teria sido melhor do que ser congelado pela natureza. Sorte a do velho então, que não veria o neto sendo levado por tão pouco também.

Ao cair na neve fofa, ele sentiu seu corpo afundando para nunca mais ser achado. Fechou os olhos, mas não escorreu uma única lágrima. Afinal, adiantaria chorar? E desmaiou.

Por sorte, ou azar, o garoto conseguiu abrir os olhos mais uma vez. Só que não ali, naquela floresta. Encontrava-se em um lugar mais escuro, com arvores por toda parte e pouca neve. A fome batia, árdua e cruel, mas o garoto estava aquecido. Eram grandes pelos macios e brancos que o cercavam. Estava envolto de algo muito maior do que ele. Uma criatura da floresta, com focinho cumprido, orelhas aguçadas e um olhar negro e sombrio.

Com certeza o garoto estava longe de casa.

De algum modo ele foi parar na toca de lobos brancos. O menino ficou com tanto pavor que pensou explodir, mas ao notar as atitudes dos felinos, viu um deles se aproximar, com um pedaço de carne na boca e o colocou próximo dele. O lobo se afastou e observou, enquanto o que aquecia o garoto, cheirava-o com calma.

O que eles pensavam que ele era? Um filhote? Queriam que ele comesse carne crua, ali no chão, enquanto seu avô, morto com as tripas para fora, estava jogado por algum canto daquele imenso matagal. A fome não o deixou pensar muito. Ele se levantou e sacou um isqueiro do bolso que usaria mais tarde para cozinhar a janta com seu velho, pós caçada. A intenção daquele acessório era a mesma para todas as coisas.

Os sete lobos que estavam ali, encarando-o, deram um passo para trás após o rápido movimento do garoto amedrontado, porém sem intenção de machucá-los. Ele pegou alguns gravetos e folhas do chão e ateou fogo. Na sequência pegou o pedaço de carne dali e o espetou com outro dos galhos. Aproximou da pequena fogueira e aguardou até o alimento improvisado ficar no ponto. Enquanto o pequeno menino devorava a suculenta carne, o maior dos lobos, lambia sua cabeça, bagunçando ainda mais seus cabelos. Quando a fome passou, ele notara o quão perdido estava, mas tinha alguém para aquecê-lo, tinha alimento todas as tardes, trazida por dentes afiados e tinha proteção.

O menino não conseguiu achar o caminho de casa em nenhum momento. Passara noites caminhando sem respostas. Os lobos, que o seguiam em todas as partes, matavam pequenos animais nas redondezas para alimentar seu bando. Ele fazia parte do bando, mas não entendia o porquê. E até hoje, o garoto não entende como foi criado por essas criaturas, durante um ano.

Certo dia, guardas florestais encontraram a toca dos lobos, consecutivamente encontrando o garoto. Mataram todos do bando, e tiraram o garoto dali para parar em um orfanato cheio de humanos. Passou por psicólogos, psiquiatras, reeducaram sua rotina, colocaram ele em uma escola e fora obrigado a socializar com crianças de sua idade. O garoto, apesar de possuir uma vida ordinária naquela floresta, sem o avo e com a companhia de lobos, preferia ela do que continuar ali, sem liberdade. Então tentou fugir. Teve que tirar a vida de algumas pessoas para isto.

Um garoto selvagem. Mas esperto e sobrevivente.

Seu destino o levou para um lugar mais rude. Crianças selvagens como ele. Assassinas, frias, e lá desistiu de reencontrar sua floresta, porque não importa aonde ele fosse, este instinto selvagem sempre o acompanharia. Era hora de o garoto aprender a viver. E viveu muito bem, tão bem que realmente foram anos bem aproveitados até agora. Ele explodiu todos que o chateavam, brincou com os que queriam ser mais espertos, conspirou contra uma grande empresa e agora, conseguiu uma noite de prazer com a pessoa que ama.

No entanto, o garoto mentiu para seu amor.

Ele sabe que um acidente ocorreu no Golden Asylum, e sabe que deixou os amigos dele para morrerem ali. Não existe espaço para Pandora e Brok em minha floresta. Se fugissem, seriam devorados por caminhantes, se ficassem, seriam dopados até acreditarem que enlouqueceram, e se estão vivos ainda, bom, sou o lobo que rasteja, eu observo, vou engoli-los e depois enterrar suas sobras. Meu avô realmente estaria orgulhoso.

 Meu avô realmente estaria orgulhoso

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⏰ Última atualização: Jan 23 ⏰

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