Capítulo 10 - Noiva de um monstro

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Madame Potts não poderia permitir uma maldade daquelas.

Quando Lumière lhe contara o que acontecera entre o príncipe e a sua futura esposa, ela ficara tão indignada, que parecia uma chaleira a ferver descontroladamente, soltando palavras que poucos, ou nenhuns, dos presentes na cozinha entenderam.

Por isso, deixara Babette responsável pelo controlo da cozinha na sua ausência. Ela sabia que não era a melhor ideia, visto que Lumière veria ali uma oportunidade única de rondar a moça e a paparicar. A jovem atraente era a criada encarregada das limpezas, mas, sempre que era preciso, ocupava o lugar de madame Potts na cozinha. A sua leveza e graciosidade faziam com que todos a obedecessem de forma cega, especialmente os homens, o que dava muito jeito naquela divisória da casa onde metade dos criados trabalhava para garantir o melhor serviço possível no jantar da família real.

À madame Potts, Liberty permitiu a entrada e ficou emocionada ao constatar que ela desobedecia à imposição de Elroy só para a agradar.

A mulher robusta sentada aos pés da cama, sorria satisfeita por ver a rapariga se lambuzar com o prato que havia lhe preparado com tanto carinho. Aquela era a ementa preferida de Elroy e a velha senhora sentia alguma tristeza ao ver que o seu menino não tinha conseguido convencer a sua destinada a partilhar aquela refeição tão especial com ele.

− Também não é fácil para ele, sabe – disse madame Potts ao interromper o silêncio que se havia instalado quando Liberty se lançara esfomeada sobre o prato. Uma ervilha saltou para o tabuleiro com um gesto desleixado da moça. A futura princesa nunca havia comido de faca e garfo. – Ele pode parecer assustador, às vezes, mas é um bom menino.

− Lamento, mas eu só consigo ver a parte do assustador. Desde que cheguei que ele tem sido desagradável comigo. Ele nem sequer veio receber-me.

− Sabe que, às vezes, as pessoas fazem e dizem coisas que não querem. – A sua mão quente e reconfortante pousou na pele do tornozelo estendido da jovem. A futura princesa ainda trazia vestido o macacão negro com que chegara, que não lhe tapava as pernas muito para além dos joelhos. − São domadas por receios, inseguranças, dúvidas.

− Duvido que aquele homem tenha medo de alguma coisa – comentou asperamente. A sua boca fechou-se com força sobre o garfo que só trazia algumas ervilhas atrás. O movimento magoou-lhe o maxilar inferior.

− Talvez se surpreenda, menina.

Liberty continuava a duvidar que isso viesse a acontecer, mesmo que nos olhos ternos daquela mulher ela apenas visse um lago de sinceridade. Tinha tido uma muito má experiência há apenas uns dias atrás. Na verdade, ao longo da sua vida as pessoas só provavam poder vir a desiludi-la, nunca ninguém a surpreendera pela positiva.

Madame Potts fez questão de permanecer no quarto da jovem até ela adormecer. Contou-lhe uma história sobre um monstro que se transformava num príncipe ao encontrar o verdadeiro amor. E Libby gostou de sentir as carícias da velha e carinhosa senhora, mais do que das palavras fantasiosas, vazias de significado para ela.

Liberty acordou sobressaltada ao ouvir o estrondo da porta ao fechar-se

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Liberty acordou sobressaltada ao ouvir o estrondo da porta ao fechar-se. Os seus olhos pestanejaram confusos ao avistarem, através da fina redoma da sua cama, Elroy encaminhar-se na sua direção. A jovem endireitou-se contra a almofada, apoiando as suas costas no conforto da mesma. O rosto do príncipe contorcia-se num esgar de fúria que a moça não conseguiu não temer.

− Não pode entrar no meu quarto assim – reclamou a rapariga ao ganhar coragem para o enfrentar. Ela nem se apercebera que, pela primeira vez, tinha considerado aquele quarto como seu.

− Chega de barreiras entre nós – bramou ao afastar as cortinas da cama num movimento rápido. A jovem, assustada, levou os joelhos até si, ocupando o mínimo de espaço possível no colchão. – Se é para você me odiar, para me repudiar, então que seja pelos motivos certos.

Elroy começou a desapertar os botões da sua camisa branca amassada.

− O que pensa que está a fazer? – guinchou a futura princesa com os olhos castanhos arregalados. As suas sobrancelhas subiam em reprovação.

O homem ignorou a reação exagerada da moça ao interpretar erroneamente as suas intenções. Se ela pensava que ele era capaz de a tocar contra a sua vontade, então era por que o tinha realmente em muito má conta, pensou com uma sombra a moldar-lhe o azul dos olhos.

− A mademoiselle precisa de ver com seus próprios olhos o monstro com que terá de casar – disse ao desapertar os últimos três botões.

O futuro monarca abriu o tecido branco e num movimento hábil viu-se livre da camisa, que caiu inerte no chão. Libby levou as duas mãos ao rosto para esconder a boca que se havia escancarado.

Aquele era o cenário mais aterrador com que a jovem se havia deparado. Nada a poderia ter preparado para aquilo.

O tronco do homem estava envolvido por desniveladas pregas de pele de vários tons, que borbulhavam em algumas zonas. Manchas rosadas quase em carne viva cobriam-lhe os ombros fortes. Linhas longas do mesmo tom desciam pelos seus abdominais de forma desordenada, irrompendo as pregas como se as perfurassem. Os bíceps inchados cobertos pela mesma camada disforme com ocasionais manchas de um tom mais negro, que cessava de forma inesperada nos cotovelos. A pele imaculada de seus antebraços só realçava ainda mais a fealdade daquela camada, que já não se poderia designar de pele, cobrindo quase na totalidade a parte superior de seu corpo.

Elroy viu o horror espelhado nos belos olhos da moça. Agora, ela sabia como ele era feio.

− Poderia tirar as calças e veria apenas um prolongamento do mesmo, – o príncipe agachou-se para apanhar a camisa do chão, − mas não quero que vomite o jantar que a madame Potts lhe trouxe – a amargura na sua voz era palpável.

− Não lhe vai fazer mal, pois não? – A preocupação com a gentil senhora que havia desobedecido ao seu patrão congelou-lhe a pele ainda mais pálida do que o habitual.

− Eu posso parecer um monstro, mas não sou um – confessou de alma ferida ao vestir de novo a camisa. – Eu nunca seria capaz de fazer mal à mulher que me criou como filho. Já que a minha mãe mal consegue olhar para mim sem chorar.

A jovem olhou para ele consternada, deixando os braços caírem desamparados ao lado do corpo dobrado.

− Não! – berrou. O futuro rei de Villeneuve inclinou-se para a frente, amparando um dos joelhos sobre a cama. Liberty arrastou-se um pouco para trás, quase caindo do colchão. – Eu não quero que você tenha pena de mim. Você pode sentir raiva, ódio, nojo, mas nunca pena.

Os olhos da garota caíram sobre a camisa aberta do príncipe, conseguindo ver mais de perto a camada repugnante que cobria o seu corpo. O homem esboçou um meio sorriso apagado ao ver de novo o horror espelhado nos doces olhos castanhos da sua futura esposa.

Elroy decidiu então que o seu trabalho estava concluído. Não havia mais nada a fazer ali, nem mais nada a dizer. Ao vê-lo sair do quarto, Liberty, encolhida sobre o seu próprio corpo e ainda trémula pela visão que fora obrigada a enfrentar, teve a certeza que estava noiva de um monstro e não de um príncipe.


A Bela RedomaWhere stories live. Discover now