Capítulo 1 - Um lugar privilegiado

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O veículo negro parara de forma silenciosa à frente da casa de Emmanuelle. A rua, que habitualmente a essa hora do dia, estaria despida sem viva-alma, se recheara de pessoas curiosas atraídas, não pela ausência do som, mas pela notícia do dia anterior. A moça recordou-se dos homens que se acercavam dela sempre que resolvia vestir sua calça negra mais justa. A imagem seria idêntica, se Emmanuelle não contasse o crescente número de pessoas que desciam a rua de forma afogueada. Também chegavam pessoas do outro lado da rua, mas eram como pingos da chuva depois de um grande temporal.

"Para quê toda esta agitação?", se perguntou mentalmente se sentando no cimo das escadas do exterior de sua casa. Ela iria assistir ao espetáculo calmamente daquele lugar, um lugar privilegiado a que só ela teria direito.

O passeio de pedra mármore já mal refletia a luz do sol que se alinhara no centro do azul límpido do céu, também ávido para assistir àquele momento. Os pés, todos cobertos de um material negro e resistente, se alinhavam de forma magistralmente perfeita sobre a pedra já praticamente esquecida. A confusão caótica, que descia a rua inclinada, ganhava ordem ao se aproximar do carro imponente que ocupava toda a estrada que dividia a casa de Emmanuelle da casa que ganhara, de súbito, todas as atenções.

Mas as duas casas eram iguais, não eram? Uma frente branca com portas metálicas duplas como entrada. Umas escadas largas no centro que davam acesso a um inútil estreito alpendre, que não teria outro remédio senão ficar eternamente vazio. Duas janelas, uma de cada lado, as únicas entradas de luz quando a porta se mantinha fechada a maior parte do tempo. Nas duas casas, as janelas se mantinham abertas, recetivas a qualquer pequena brisa que pudesse preencher um pouco mais o espaço, quase desprovido de móveis. Haviam as camas, claro, mas pouco mais. A pequena área do imóvel também não era propícia a grandes desperdícios. Quem entrasse naquelas duas casas, veria a mesma sala minúscula com um sofá de três lugares e um televisor plasma fundido à parede. Porque a televisão ninguém poderia dispensar. De que outra forma, poderiam ficar a par das notícias do reino? Emmanuelle e seus pais comiam sempre naquele sofá com o televisor ligado para preencher o silêncio ensurdecedor. E não era isso mesmo que costumava acontecer do outro lado da rua, naquela casa que agora parecia tão mais especial do que a dela?

Noutra rua de uma outra cidade, noutro lugar do mundo, diriam que eram uma coincidência todas aquelas semelhanças. Não em Villeneuve, uma província de França, onde as casas eram todas iguais, um espelho umas das outras. Não a tornava particularmente bela, todas aquelas casas coladas umas às outras, rua à fora, como se não tivessem identidade própria. Era difícil dizer quando começava uma e terminava a outra. Nem telhado tinham para ajudar o observador desatento a perceber claramente onde ficavam as fronteiras que as separavam. Não que isso confundisse os habitantes daquela província, que já tinham os olhos treinados para não procurar pelas diferenças.

Perdida na multidão, Charlotte, uma jovem de longos cabelos negros, que quase pareciam um prolongamento das suas vestes, acenou sorridente para o topo das escadas da casa de Emmanuelle. A garota vira o gesto da amiga, mas arregalou os olhos e suspirou exasperada.

− Elle! – gritou a jovem de cabelos negros, pensando ingenuamente que a amiga estava tão distraída que nem vira o que tinha mesmo à frente dos olhos.

Sem esperar resposta, os olhos rasgados de Charlotte voltaram a fixar-se nas escadas do outro lado da rua, impacientes pela grande saída. Porém, as portas duplas mantiveram-se obstinadamente fechadas.

Emmanuelle entrelaçou as mãos sobre o colo, exercendo um pouco mais de força do que a que seria necessária. Porque é que a presença da sua melhor amiga lhe parecia uma traição? Charlotte era inconveniente por natureza, mais tarde Emmanuelle desculpar-lhe-ia o erro. Não naquele momento, em que rezava internamente, com todas as suas forças, para que os homens que haviam entrado na casa, que não era a sua, saíssem de braços no ar rendidos ao grande equívoco da situação.

A Bela RedomaDonde viven las historias. Descúbrelo ahora