Prólogo.

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A música era "I'm Not In Love" do 10cc, eu amava aquela música. Todas as férias de verão o meu pai, que nós carinhosamente o chamávamos de J, nos levava para uma casinha de campo que ficava aos arredores de Atlanta. Passei momentos inesquecíveis naquele lugar, foi a última vez que consegui me sentir feliz e em família. Lembro claramente dos olhos castanhos do meu pai sorrindo para mim, enquanto eu brincava na grama verdinha que ficava ao redor da casa. Todas as noites nós nos juntávamos para fazer o jantar, eu, minha mãe, o J, e o - ainda bebê – Natan. Meu pai tinha uma estante em que guardava diversos discos empoeirados, ele passava os dedos pelas capas como se estivesse em dúvida em qual colocar, no fim ele sempre escolhia o mesmo, onde a primeira faixa era "I'm Not In Love". Foi a primeira música comprida que consegui decorar inteira. Hoje eu não estava na ensolarada casa de campo, e sim e um breu total. Olhei ao redor aflita, eu não fazia ideia onde estava.

-JUSTIN – gritei em direção ao nada – ONDE VOCÊ TÁ?

Caminhei pela escuridão, entre folhas secas e arbustos da floresta, até encontrar uma luz bem ao fundo, era a casa de campo do meu pai. Corri até a construção enfiando os pés nas poças de lama, estava tudo muito escuro e não dava para saber exatamente onde eu deveria pisar. Cheguei nos degraus da casa de madeira, olhei pelas janelas e só conseguia ver vultos e mais vultos passando pelo vidro. Fui em direção a porta, girei lentamente a maçaneta e entrei, tudo estava exatamente como nós tínhamos deixado, o disco girava e dançava na vitrola, eu amava aquela música.

-Isa, meu amor, o jantar tá pronto – olhei para cozinha e pude ver sentados na mesa de mármore escurecido: minha mãe, meu pai, o Natan e... o Tyler. – pensei que você iria perder a hora da comida. – J estava vestindo seu avental amarelo escrito "o melhor chefe do mundo", o mesmo que eu tinha dado a ele de presente no Natal.

-Eu jamais perderia a comida do melhor chefe do mundo. – brinquei. Todos riram por uns segundos, fiquei paralisada olhando o rosto de todos em uma estranha sintonia. Saí da minha paranoia e enfim sentei na mesa.

-Que bom que você veio. – disse Tyler do outro lado.

-O que vamos comer? – falou o Natan empolgado.

-Ensopado de carne, espero que gostem.

-O cheiro tá maravilhoso – disse minha mãe levantando para ajudar o J a servir a comida. – Isabelle querida, vá lavar as mãos e aproveite para fechar as janelas, lá fora está muito frio.

Assenti com um movimento e me levantei. Segui em direção à única janela que estava aberta, o vento passava violento por ela, balançando as cortinas pesadas de veludo. Quando cheguei mais perto vi uma luz distante, no outro lado do gramado. Apertei bem os olhos e tentei identificar de onde estava vindo aquilo.

-Mãe, pai, acho que tem alguém lá fora. – falei sem tirar os olhos da luz. 

Coloquei o rosto pra fora da janela e consegui ver um lago, não lembrava de lago algum nos arredores da casa, pisquei algumas vezes e vi mais imagens se formando ao redor dele, foi quanto percebi que era o mesmo lago em que jogamos o corpo do David. Me afastei rápido da janela, abaixei o vidro e fechei as cortinas rapidamente. Quando virei percebi que não tinha mais ninguém na cozinha, e de uma hora para outra todas cores e cheiros desapareceram, deixando a casa velha, empoeirada e vazia. Mas a música permanecia. Passei as mãos no bolso da calça em busca do meu celular, sem sucesso.

-Mãe, pai?

-ISA

Me virei. O corpo ensanguentado do David estava de pé próximo a porta de entrada, sua cabeça cortada estava presa ao pescoço por um pedacinho minúsculo de carne. Gritei esvaziando todo o oxigênio dos meus pulmões, mas não saia nenhum som da minha boca. O cadáver do David se contorceu inteiro caindo no chão. Coloquei a mão no peito e comecei a chorar de desespero, eu nunca tinha sentido tanto medo em toda minha vida. De repente uma água suja começou a invadir a casa pelas portas e janelas, era escura e fedia a carne podre. Subi no sofá na tentativa de não me molhar com aquilo, mas sem tirar os olhos do cadáver esfolado que estava no chão. A cabeça podre rolou para o lado por conta da água, desprendendo-se do corpo, os lábios pretos em decomposição, o sangue velho coagulado nas marcas que o canivete fez em suas bochechas  e testa, o osso amarelado saindo discretamente pelo queixo, os olhos brancos ainda abertos me olhavam com fúria.

-Aquele foi seu passado, e esse é seu futuro. – falou enquanto desaparecia no liquido escuro que invadia o cômodo.

"Be quiet, big boys don't cry, big boys don't cry, big girls don't cry" a música ainda insistia em tocar no ambiente enquanto a água me engolia aos poucos.

ÊxtaseWhere stories live. Discover now