Caixa De Ferramentas

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A fivela do meu cinto estava me machucando há um tempo, mas eu estava com tanto sono que não queria tira-lo. Por fim minha bexiga foi um despertador mais eficiente, sentei-me na beirada da cama, e meus dedos dos pés fizeram o favor de encontrar minhas sandálias. Encontrei o caminho para o banheiro usando apenas um olho, enquanto o outro fingia que ainda estava dormindo. Minha mira era pior ainda com metade da visão, e confesso que acabei molhando o cesto de lixo, abri o outro olho pra ver a merda que fiz (que trocadilho), sacudi o meu pequeno amigo e fui para a pia. Abri a torneira com os olhos fechados, a agua estava bem gelada, o que era perfeito pra eu acordar, abaixei-me e molhei meu rosto, passando os dedos entre as pálpebras pra tirar a remela. Fechei a torneira e fiquei ereto, a agua escorria em minha camiseta, apoiei a mão molhada no espelho, manchando-o.

-Não conseguimos, de novo - eu disse para o meu reflexo, que agora parecia ter os olhos um pouco maiores. O café não fez muita diferença no meu ânimo, e ver o resultado do meu passeio em meus tênis no tapete da sala também não ajudou muito. Deitei-me no sofá e fiquei olhando para o teto, sem musica alguma pra acompanhar aquele drama sem sentido. Ouvi algumas batidas na porta, "Vou ter de levantar outra vez?" pensei. Coloquei um pé no chão, depois outro, então em vez de levantar me joguei no tapete da sala. Bateram de novo.

-Ah! Já vai! - eu disse, e me levantei. "Portas, o pesadelo dos antissociais" pensei, "Isso daria um ótimo titulo" e ri dessa ideia. Girei a chave e percebi que não havia trancado a porta, então abri.

-O que você pensa que está fazendo?! - perguntou, esbarrando em mim ao entrar.

─Abrindo a porta? ─ ela desdenhou com os olhos.

─Foi um dia histórico na empresa, o maior acordo já feito, e quando procuro o principal responsável por isso ele não está lá... O próprio chefe da Kaito Company fez um agradecimento a você, em nossa língua! ─ disse ela ─ Onde você se meteu?

─Eu... Me demiti... ─ eu disse. Era quase engraçada sua reação a minha resposta.

─Que merda você está dizendo?! ─ disse ela ─ Não pode fazer tudo que fez e depois dar o fora, não pode se excluir de algo tão grande!

─Pra ser excluído de qualquer coisa é só não estar presente nos momentos mais importantes... ─ eu disse. Ela revirou os olhos.

─Começou... ─ disse ela ─ Olha, eu não te entendo, você começa uma intensa dedicação a algum objetivo, e quando está quase alcançando simplesmente desiste... ─ ela se sentou no sofá, observando meus tênis ─ O que você quer agora?

─Nunca me fizeram uma pergunta tão difícil... ─ me joguei no sofá, os braços atrás da cabeça ─ Tudo que eu quero, pode ser encontrado numa simples cozinha... Mas eu não consigo...

─Está falando sobre se tornar um cozinheiro? É isso? Por que não me disse antes? Poderíamos negociar e até abrir um restaurante...

─Estou falando de ferramentas Joyce! Pra tudo que fazemos precisamos de ferramentas...

─Eu não estou te entendendo... ─ disse ela.

─Eu não consigo dizer o que quero, só sentir...

─Ah, quer falar de sentimentos agora? Sabe o que eu sinto? Que você está cego e mudo, além de não conseguir ver o que está bem na sua frente, não consegue dizer o que quer...

─E você não consegue enxergar o obvio! ─levantei-me ─ Só quer me ouvir, mas não consegue me ver, perceber o que meu corpo está dizendo... Eu não tenho habilidade pra me expressar, mas tenho pra demonstrar... Sabe, é tão estranho ter de me lembrar de respirar a toda hora, um descuido e já me sinto asfixiado... ─ eu disse. Ela se levantou.

─Está errado de novo, você também não sabe demonstrar... ─ ela colocou a mão em meu peito, e senti um volume embaixo dela ─ Nunca demonstrou o suficiente, uma mensagem se torna inútil quando não compreendida por seus espectadores... Eu cansei... ─ ela tirou sua mão e caminhou em direção à porta, o volume caiu, e quando olhei percebi que era a aliança que eu havia lhe dado. Em seguida ouvi a porta bater, contive minha vontade de ir atrás dela, do que adiantaria se eu não mudasse? Mas isso não significa que eu conteria minha raiva.

─Merda, merda, merda! ─ eu gritava enquanto chutava e esmurrava toda a decoração, enchendo o tapete de cacos de vidro, e cerâmica de um dos meus vasos chineses. Fui até a parede mais próxima, esquecendo-me que ela era áspera, e meu soco manchou-a de vermelho, a ardência e dor foram inevitáveis, e acabei gritando. Eu diria que suor masculino saiu dos meus olhos nesse momento ─ Chega! Eu vou acabar com isso... ─ Fui até a cozinha.

Chamar um talher de ferramenta deve ter sido um dos meus piores erros de expressão, embora eu não dissesse que uma faca de trinta centímetros fosse um talher. Meu reflexo na lamina era quase como em um espelho, e dessa vez minha mão não estava tremendo, dei um suspiro longo e virei a parte cortante pra minha garganta. O movimento que eu precisava já tinha sido calculado e pensado varias vezes em minha mente, tornando-se quase automático pra mim. Minha mão firmou-se e meu braço se moveu, e quando achei que conseguiria algo me impediu, era minha outra mão, segurando firme meu punho. Nunca pensei que uma mão esquerda pudesse ser tão certeira, larguei a faca e me apoiei na pia, arfando.

─Por que me impediu? ─ perguntei a mim mesmo ─ Não é obvio que está lutando contra seu próprio assassino? Vida e morte anseiam dentro de você... Você quer viver, mas não desse jeito... Diferente da maioria você não tem medo da morte, tem medo da vida... O que é perfeito pra uma aventura... Não deixarei que se mate até que tenha se aventurado o bastante pra se sentir vivo... ─ sim, essa foi uma resposta que dei a mim mesmo.

Aventureiro De All Star - Concluído.Место, где живут истории. Откройте их для себя