Capítulo 13 - (Quase) todo mundo

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Suas amizades sempre começavam de um jeito inusitado. 

Com Glória, não poderia ter sido diferente.

– Você dormiu com meu marido?! – gritava Glória ao telefone.

– Quê? – balbuciava uma Dona Jú, bêbada de sono às três da manhã.

–É uma pergunta simples! Você-também-transou-com-meu-marido?

–Minha senhora... Quem é seu marido?

–Ora, você sabe muito bem... O oftalmologista garanhão!

Em não poucos minutos, Dona Jú entendera que Glória era a ex-esposa bêbada de um tal Doutor Paulo, que "tava de caso com a puta ruiva", melhor dizendo, a "doutora de ossos" com quem vinha tentando agendar uma consulta. Aparentemente, depois de gritar um bocado no consultório do marido e da amante, "melhor dizendo, ex-amante", Glória prometera ligar "para todas as suas pacientes mulheres e, quem sabe, alguns homens", com o objetivo de descobrir com quem, exatamente, ele tinha dormido. Mas, como a "maldita ruivona" correra "pra salvar seu gado", dizendo que era "mais ex que amante", Glória pegara a agenda dela por engano. Nesse ponto, Dona Jú teve de informar-lhe de que já devia estar há duas noites atormentando a vida dos pacientes errados e que, talvez, aquela não fosse "a abordagem mais adequada" no que dizia respeito à "manutenção de sua saúde mental."

Com o tempo, Glória se acalmou. Dona Jú fazia questão de destacar as vantagens de uma vida sem maridos, guardadas as devidas proporções de cada caso. Passaram a conversar regularmente, a outra também dada a pendurar-se ao telefone, coisa que, naqueles tempos, já quase não se fazia. Acaba que os papos tornaram-se uma benção para Dona Jú, já que sua amiga tijucana havia falecido, culpa da idade mesmo e de um coração fraco. E acaba que a casa onde tinha ido parar por engano havia sido alugada pela família da adorável Débora –  sabia que sua memória para endereços ainda não estava tão fraca assim. Como quem cuidava do aluguel era o pai da menina, ninguém tinha atinado com coincidências de nome de proprietária. Dona Jú ainda se ria pensando sobre os motivos que levaram sua amiga a esconder que vivera seus últimos dias com um homem vinte anos mais jovem. Ora, pensava, se tivesse sabido, apenas daria os parabéns e perguntaria como, afinal de contas, a coisa toda ocorrera. Adorava uma boa história.

A amizade com Glória era a única coisa que ainda podia convencer Dona Jú a encarar o Rio de Janeiro de vez em quando. E aquele era um dia dos professores em plena sexta-feira. O clima de feriado pedia bateção de pernas, portanto passeavam pelo Largo da Carioca. Decidiram parar em uma banca de livros, cuidada por um camelô muito simpático que Dona Jú achava que conhecia de algum lugar. Puseram-se a jogar conversa fora, quando entrou em cena nada mais, nada menos que "a tal ruivona", tratando João, o camelô, como se amigo íntimo fosse. Dona Jú ficou a postos para socorrer os possíveis feridos, mas, ao se verem, ex-esposa e ex-amante não trocaram uma palavra. Entre elas, apenas olhares cheios de ressentimento e compreensão contidos. Depois, viraram-se para os livros, como se não se conhecessem. Surpreendente e, ao mesmo tempo, nada inovador: Dona Jú sabia que os seres humanos eram imprevisíveis. A tal doutora, Mariza era o nome, ficou a cochichar nos ouvidos de João:

– Eu consegui...

–Jura?

– Tem plaquinha e tudo...

– Tenho direito a foto de graça?    

– Quando quiser é só chegar.    

– Mas eu quero um retrato artístico. P&B.    

Os dois ficaram entretidos por alguns minutos com o cartão de visitas do novo estúdio fotográfico, embebidos em orgulho e esperança, de tal forma que não repararam na equipe de TV ali perto. Menos ainda em Cecília, a quem a câmera, um técnico e um produtor seguiam, sem entender por que subitamente estancara, os olhos fixos em Mariza.  De reconhecer a doutora, "uma verdadeira milagreira", reconheceu João, alguém a quem pretendia evitar não importava o quê. Mas João logo levantou os olhos, despedindo-se de Mariza e pedindo a Pedro, seu mais novo ajudante, que tomasse conta da barraca por ele. Resoluto, cruzou o trechinho de praça e, quando se deu conta, Cecília já estava sentada em um barzinho da Primeiro de Março com o camelô que não era nada se não insistente.

O Messias de AntoniaWhere stories live. Discover now