Capítulo 10 - Páscoa

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Jorge desencavou o jornal do último domingo e começou a fazer as palavras cruzadas que havia deixado para trás. Gostava de ser assim, metódico. Encarava os fatos da vida em sua ordem exata de surgimento. Não partia para uma nova atividade sem antes resolver a anterior, de forma que aprendera a ser eficiente. Além disso, era rápido, capaz de resolver uma variedade de problemas. Não que fosse melhor do que ninguém. Apenas tinha aproveitado as oportunidades que lhe surgiram. Bem mais do que a maioria das pessoas, considerava. 

Sim, porque não nascera rico, nem mesmo classe média. Sabia o que significava fome: do tipo que seus filhos jamais sentiriam. De fato, fome era coisa que não passava totalmente, assim, com comida e estabilidade. Por isso, tinha uma namorada e, às vezes, acreditava que, se explicasse à esposa, ela compreenderia. Abrir-se daquele jeito, no entanto, não encaixava em seu método. Além do mais, a namorada – como Jorge gostava de poder namorar! – trabalhava e sabia muito bem o valor do dinheiro. Pé no chão, realista e organizada, como ele, como sabiam que, no fundo, todos deveriam ser.    

O apartamento estava limpo e isso era o máximo que podia exigir de sua ajudante. A faxineira parecia não entender que cada um tem sua própria maneira de organizar pertences. Sua namorada entenderia. Não sabia, é claro, que Jorge era casado. Prática como era, a informação teria feito com que o descartasse em questão de segundos. Da esposa, Berta, temia um ataque cardíaco, já que seu estado de saúde era delicado. Tornaria-se ainda mais delicado, caso se pusesse a contar os cinco anos do que chamaria de infidelidade. Jorge não diria que a palavra infiel o descrevia de forma precisa. Apenas via-se preso às demandas das várias pessoas a quem amava em igual medida, incluindo os filhos, que o criticariam, se soubessem do caso, por não entenderem o quão adequado estava a seu método.

Ísis e Osíris eram mais filhos de Berta do que dele. Jorge sabia o quanto precisara se ausentar de sua educação, mas essa era sua vida e de nada adiantaria chorar leites derramados. Melhor, para ele, analisar os fatos assim, distanciado. O olhar objetivo garantia-lhe não apenas a tranquilidade, mas também a certeza de que não incorreria em novos erros. Estava prestes a anfitriar uma festa de família e precisava concentrar-se em ser referência de paz. Berta pôs-se a enviá-lo ao sacolão e ao mercado, vezes sem conta, insatisfeita com os ingredientes que se acumulavam sobre a bancada da cozinha. À medida que "seguia seus instintos" com o risoto de pequi, Jorge ia se irritando profundamente, obrigado a ajudar de forma randômica como se o tempo fosse algo mais que um recurso escasso.

Era a refeição de Páscoa – meio almoço, meio jantar. Rezava a tradição que todos chegariam roxos de fome, depois de passarem o dia na expectativa do que seria servido. Com o passar das horas, Jorge observaria um interessante degradê de roxo, verde e amarelo colorir de fundo as expressões daqueles que teriam comido demais, distribuindo antiácidos reservados para ocasiões como aquela. Berta serviria seu risoto, somado a um suflê de batatalhau, salada verde com o champignon de que Jorge fazia questão e lasanha à bolonhesa para as crianças. E um empadão de queijo ou carne, porque, afinal, é bom que as crianças tenham mais de uma opção. Aplicando à lógica aos adultos, acabaria fazendo um estrogonofe também. Com sorte, farofa bem dourada. E mandara comprar pães multicoloridos que, na opinião do marido, tornavam a coisa toda ainda mais espalhafatosa do que já era. Nem queria pensar nas sobremesas para as quais, de qualquer forma, não teria estômago. E nos ovos que todos ganhariam. Jorge passara metade da manhã escondendo ovos no quintal, sob a supervisão de Berta, em ângulos que a esposa descrevia como possíveis de "ver sem ver".

Comeriam as sobras por uma semana obrigados a suportar a mesma comida todos os dias. Jorge detestava saber disso, mas o pior era ver todos a seu redor agindo como se não soubessem, como se não fosse sempre assim: exagero, desperdício e enfado. Às vezes, queria sacudi-los, chacoalhar suas cabeças até que voltassem ao estado original em que as encontrara. Mais especificamente, voltar à época em que Berta era apenas uma jovem em busca de orientação e espaço para ser cuidada e cuidar. Mas, para a infelicidade de Jorge, as pessoas mudavam e não se podia confiar nelas. Depois, perguntavam-lhe no trabalho porque ele preferia contratos a humanos, como se a resposta não fosse evidente. Se até padres diziam que casamentos eram contratos, por que não ser informado sobre neuroses, tendências familiares e corporais, antes de pôr ser aval vitalício em qualquer documento?

Pois Berta tinha cometido o maior dos crimes: a eterna mudança. Mesmo pensando assim, Jorge chamava o que sentia de amor. Difícil era lidar com o que lhe soava como mentira ou hipocrisia. Depois de duas horas de festa, enjoara –não de comida, mas de falsidade –, por mais que se esforçasse para parecer o pai dedicado. Parentes que nunca se viam forçavam uma convivência social tensa, enquanto Jorge tentava se desvencilhar de suas análises situacionais sem muito sucesso. Para ele, era apenas natural que não se desse a mínima para família de origem –águas passadas, jogos sem surpresas, todos crescidos. Fingir parecia-lhe pior do que dramatizar algo que já não existia.

Jorge reconfortou-se, imaginando que acabaria logo. Relaxou e, sem dúvida, esse foi seu grande erro. Porque, às cinco da tarde, sua namorada Regina ligou. Esquecera-se de colocar o celular no mudo e tampouco pretendia deixar passar o contato, aborrecido como estava. Portanto, trancou-se no banheiro o mais rápido que pôde, mas ainda a tempo de ouvir comentários ao estilo "o velho empurrou o novo".

– Regina! Que bom que você ligou...

– Atrapalho?

– Nunca!

– Tudo bem?  

– Tudo. Como está indo de Páscoa?

–Casa da mamãe. O juiz autorizou que Pedro passasse a manhã comigo e a tarde com a outra lá. Daqui a pouco saio para esperar ele. Quer passar lá em casa?

– Que horas?

– Seis e meia. Tem chocolate para um batalhão aqui... Se Pedro come isso tudo sozinho, amanhã nem levanta pra escola...

– E ele vai querer dividir?

– Querido, esqueceu com quem está falando? Aqui em casa quem põe limite sou eu.

– Nossa! Chega a ser sexy isso...

– Seis e meia?

–Seis e meia.

– Te amo.

– Te amo. 

Era isso, Jorge pensava, já mais calmo. Praticidade, coerência. Se tivesse conhecido Regina antes, teria se casado com ela. Mas não fora o caso e, quando abriu a porta do banheiro, deu de cara com Ísis. Seu cérebro pôs-se a calcular, imediatamente, de quanta informação uma menina de oito anos precisava para conectar aqueles pontos.

– Papai, por que você tá falando com a mamãe se ela está ali na sala?

Dali em diante, Jorge estava ciente de que sofreria as consequências de um efeito dominó: a voz da pequena Ísis conseguia ser bem estridente quando a menina estava confusa. Berta adentrou o corredor quase no mesmo instante e ele soube, por sua expressão, que ela já lidava com vocábulos da estirpe de traição e amante. Não teria nem tempo de explicar. A confusão envolveu o estilhaçar de tigelas contra o piso brilhante de sinteco, um excesso para o qual tampouco tinha paciência. 

Saindo de casa, Jorge percebeu que seu zíper ainda pendia semi-aberto, fechou-o e saiu. Como gostava de otimizar o tempo, aproveitara a ligação para mijar.

Foi direto para a casa de Regina, seu único relacionamento garantido.

Não pediria nada a Berta e não comentaria nada com Regina.

Permitiria-se, apenas, ficar aliviado, até que o medo começasse a remoer suas entranhas.

Teoricamente, estava só e instável.

O Messias de AntoniaWhere stories live. Discover now