Capítulo 1 - O Cansaço

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Antônia cruzou a rua e quase foi atropelada por dois carros (sem conseguir escapar, no entanto, de uma bicicleta). 

Estivera imaginando em qual história de sessão da tarde sua vida se encaixaria. 

Talvez, descobrisse potencial de alma gêmea em um amigo por quem, a princípio, não sentisse nada além de companheirismo. Como no filme de 95. 1995, no caso. 

Mas quem poderia ser esse amigo? 

Talvez, fosse seu primeiro namorado (solteiro, sempre enviando dicas de interesse). 

Porque, é claro, existia alguém. 

Quem sabe aquele menino (sempre a seu lado nas aventuras mais loucas)? Talvez, ele fosse mesmo capaz de abandonar o estilo polígamo para estar com ela.

E só com ela.

Teria de fazer uma pesquisa, ao que parecia. Vale dizer que, em 95, mal conseguia conjugar os tempos verbais mais básicos. Teria o mundo mudado a ponto de que um filme como aquele não servisse mais de referência? Tais elementos contextuais teriam de ser apropriadamente contabilizados e, posteriormente, triangulados. Havia um sem-número de homens que poderiam se encaixar no papel. Antônia faria sua parte - dessem eles a menor chance - apaixonando-se ao menor sinal de interesse...

Mas, talvez, sua história de amor estivesse programada com um completo estranho. Alguém ainda por vir numa festa... Não, não em uma festa, mas em um local inesperado como uma lavanderia... Pena que ela, para economizar, lavasse suas próprias roupas... Será que se, um dia, respirasse fundo e decidisse: "Hoje, eu vou à lavanderia encontrar o homem dos meus sonhos", ele estaria lá, esperando por ela? Nunca se pode subestimar o poder da mente. Um empecilho era o fato de que não conhecia ninguém que, efetivamente, fosse a lavanderias: tudo soava americano demais e ela até que gostava de lavar as próprias roupas, mesmo que à mão.

Enquanto Antônia considerava, seriamente, o papel que deveria ter em seu futuro sucesso amoroso, motoristas incumbidos da infeliz tarefa de não atropelá-la faziam o melhor que podiam. Um deles conseguiu desviar-se, jogando o carro contra a calçada e xingando a alma da mãe do alheio. Outro quase a pegou, jogando-a na calçada contra a bicicleta, não necessariamente mal-intencionada, de um menino, que devia ter uns oito ou nove anos.

No fantástico mundo de Antônia, um acidente de bicicleta foi feito para encontrar pessoas interessantes e não para deixar sequelas. É o tipo de acidente em que se quebram os ovos recém-comprados na mercearia. Ou em que folhas de um diário se espalham pelo chão para que um solteirão lindo que esteja pilotando o veículo leia, envergonhado pela situação provocada por ele, e comece a se interessar pela mocinha. Ou seja, um acidente de bicicleta foi feito para quebrar o gelo, como nos filmes. Não à toa, achou muito exagero que torcesse um tornozelo, girasse o corpo e batesse com a cara no meio-fio, rompendo uma pequena veia ocular, que inundara sua vista direita de sangue, deixando-a parcialmente cega. Especialmente considerando que o piloto da bicicleta era um menino sem-graça de oito anos de idade. Talvez, o médico da emergência fosse o motivo de todo aquele transtorno.

Chegando à barulhenta emergência do hospital da Penha, no entanto, Antônia percebeu que não só ficaria permanentemente cega daquele olho, como o médico de plantão era uma mulher e o oftalmologista encarregado da cirurgia de emergência era um homem vinte a trinta anos mais velho que ela - nada atraente e casado - que se chamava Paulo. Ao menos, nada atraente para ela.

Não sentiu nenhuma emoção particular ao saber que estava cega de uma vista. Simplesmente, estivera tão pouco interessada em qualquer coisa que dissesse respeito a seu corpo nos últimos milênios que parecia justo que forças superiores começassem a inutilizá-lo para sempre. Vivera acreditando que a saúde era coisa reparável e a medicina moderna, uma espécie de tenda milagreira hi-tech. Achava, por exemplo, que ficar fraca só porque não comia decentemente era prova de sua moleza: tanta gente não tinha dinheiro para comer e trabalhava bem mais do que ela. Dava mais valor à mente que a qualquer outra parte de si mesma. Vontade e intenção superariam qualquer obstáculo.

O Messias de AntoniaWhere stories live. Discover now