Capítulo 6 - A mangueira do vizinho

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Dona Jú, de Juliana, era uma mulher cheia de excentricidades. Do alto de seus setenta e dois anos, acreditava que o dinheiro servia para ser gasto, algo que, de óbvio, aparentemente, não tinha nada. Assim diziam seus vizinhos, mas, se não podia se dar ao luxo de manter algumas extravagâncias, com aquela idade, que sentido a vida teria? E não se tratava apenas do pó de arroz com que cobria a pele cor de café toda vez que saía.

No momento, sentia-se contrariada. Não chegava a ser um aborrecimento, pois evitava esse tipo de drama. Contrariava-se apenas. Como então ela saía de sua confortável casinha com jardim, a mesma com que sonhava desde quando era casada com seu pão-duro e falecido cônjuge – que Deus o tenha! –, casinha essa que ficava na pacata cidade de Iguaba Grande, Região dos Lagos, tendo enfrentado duas horas e pouco de viagem apenas para ir ao consultório da famosa – e cara! –especialista com nome alemão e a doutora decidia cancelar a consulta assim, sem mais nem menos?

Ora, Dona Jú sabia o que era profissionalismo, sabia o que eram bons modos e aquilo não era mostra de nenhum dos dois. Talvez, a tal doutora de ossos se achasse muito importante porque sabia a diferença entre clavículas e rótulas, mas isso não era coisa que se fizesse – não, senhor! Emergência familiar, o secretário dissera. Um moço muito simpático aquele. Poderia se casar com qualquer moça que escolhesse, isso é certo, com sua carinha de anjo e sua carteira profissional devidamente assinada. Se bem que os tempos, agora, eram outros, Dona Jú sabia disso também.

De toda forma, não vinha ao caso... Um absurdo ser tratada assim pela bã-bã-bã dos ossos do Rio, era o que pensava. Se o seu médico de confiança já tinha lhe dito que o problema era a idade e não havia nada a se fazer além de algumas boas compressas quentes nas pernas quando a dor batesse, impedindo-lhe de andar. Devia ter dado ouvidos a ele, que nunca lhe falhara, pensava. Mas não, fora ouvir aos pedidos dos filhos. Filhos sempre acham que sabem mais do que os pais. Chamam-nos de ultrapassados enquanto caçoam de seus eletrodomésticos. Mas Dona Jú não se fazia de rogada: se um liquidificador, digamos, ainda tritura e bate, que importava quantos anos ele tinha?

"Faça um esforço, mamãe, e vá ver essa médica!", eles tinham insistido, arruinando o Natal. Logo o Natal que, na opinião de Dona Jú, não era hora de pensar em nada além de bençãos. Tinha três bençãos, dois homens e uma mulher, um homem e a mulher casados e o outro perdido no mundo de sua empresa, uma famosa multinacional. Mas Dona Jú fizera o esforço e pra quê? Tinham até oferecido carona, caso quisesse esperar até sábado, mas não estava velha a ponto de não poder pegar um ônibus. E, além do mais, achou que seria agradável ir vendo a paisagem para saber o que tinha mudado e o que continuava igual.

Agora, o que faria no Rio? Aquela cidade barulhenta e detestável? Fazia questão de nem lembrar que era carioca, mas, tinha levado "um baita bolo" e agora estava presa em sua cidade natal com uma passagem de retorno já comprada e dobradinha na carteira de lona. Sempre podia visitar velhos amigos, foi o que conseguiu pensar, assim de improviso. Mais especificamente, sua melhor amiga, Clara. Portanto, pegou dois ônibus errados antes de acertar-se em relação ao bairro, depois um terceiro que quase a levou a seu destino. Sempre preferia ver o copo cheio, por mais que estivesse tudo muito mudado por aquelas bandas, mas ainda lhe faltavam algumas quadras e, depois de andar um pouco, decidiu pegar um táxi. "Nem sai tão caro quanto dizem". Saiu caro, porque o que Dona Jú tinha era mais uma série de indicações imprecisas e menos um endereço. Rodaram por quase uma hora pelo mundo tijucano. Quando Dona Jú finalmente avistou a casa, o motorista deixou-a na esquina da rua, mais impaciente do que grato com o valor da corrida.

Dona Jú subiu a rua a pé, com calma, até chegar à casa que procurava. Examinou-a atentamente por um minuto, como que para certificar-se de que sua memória não a enganara. Era uma casa não muito grande, fachada maltratada com grandes janelas de friso azul descascado. Abriu o portão e mal teve tempo de ver o pastor alemão que saltava sobre ela, preso a uma corrente curta o suficiente para impedir que atacasse as rendas inglesas de sua blusa. Com o susto, Dona Jú jogou-se para trás, sentindo pernas e respiração falharem, e desmaiou, plácida, sobre o jardim mal cuidado.

O Messias de AntoniaWhere stories live. Discover now