Capítulo 2

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Maio de 1.956

— Muito bem, crianças! Agora vamos decorar a tabuada do seis!

Clarice apontou para o quadro negro onde havia acabado de escrever os números com giz colorido. Sabia que a maior parte dos professores preferia pura e simplesmente o giz branco, mas aquela monotonia da cor parecia deixar tudo mais sem graça. Pedira ao diretor uma caixa de giz colorido que, obviamente, lhe fora negada e assim, com recursos próprios, ela mesma providenciou o item. A vida tinha de ser colorida, o ensino tinha de ser colorido, dinâmico e não aquela coisa maçante a que estivera submetida durante sua própria vida escolar.

Viu os olhos dos alunos se iluminarem ao perceber a mistura de cores, os sorrisos se espalharem e em coro, começaram a ler, linha por linha. Haviam ficado tão entusiasmados que, quando a professorinha resolveu fazer uma chamada oral, houve até um princípio de tumulto pois todos queriam falar ao mesmo tempo. Era algo tão simples....

Clarice prosseguiu a aula contagiada pela empolgação de seus alunos e após receber o último beijo, fechou a porta da casinha humilde onde funcionava a escola e começou a caminhar para casa naquele fim de tarde de tempo agradável. Parou na loja de armarinhos onde comprou alguns itens que a avó lhe havia solicitado, deteve-se para conversar com um ou outo conhecido e então tomou o caminho da fazenda que ficava a alguma distância do centro da cidade. A estrada de terra levantava um pó vermelho sempre que o vento soprava e Clarice era obrigada a levar seu lenço ao nariz para não sufocar. Poderia ter pego o carro que havia pertencido ao seu pai, mas gostava da caminhada, de sentir o cheiro de mato cortado, o som dos pássaros que voavam baixo preparando-se para se recolher.

Temera a volta para sua cidade natal após tanto tempo fora; havia se encontrado no Rio de Janeiro onde vivera com a tia por todos aqueles anos. Aliás, anos que haviam sido muito intensos, cheios de descobertas enquanto ela deixava de ser uma completa menina para se tornar uma mulher. Voltar para Aurora do Norte a pedido da avó havia lhe causado temor; não sabia o que esperar de uma cidade tão pequena e diferente da agitada e moderna cidade carioca. Chegou mesmo a se rebelar ante aquela ideia que lhe fora enfiada goela abaixo após o falecimento do pai que não passava de um bêbado viciado em jogos para a jovem.

A contragosto e sem ter outra opção, embarcou no trem com destino à estação da Luz, em São Paulo e de lá pegara o ônibus até Ribeirão Preto onde a avó lhe esperava com um dos funcionários da fazenda. Os primeiros dias foram de tédio e monotonia. A jovem se desacostumara àquela vida parada e sinceramente chegou a pensar que enlouqueceria. Porém, como diz o ditado, "nada como um dia após o outro". Se o princípio havia sido um tanto conturbado, o tempo havia lhe trazido as gratas surpresas de uma nova fase. Agora, observava a paisagem ao seu redor com um sorriso de satisfação: sua vida, finalmente, havia entrado nos trilhos.

Seus pensamentos e lembranças a envolviam de tal forma que sequer ouviu o barulho de pedras sendo esmagadas pelo caminho, apenas se apercebendo da chegada do veículo quando seu motorista a interpelou:

— Precisando de carona?

Clarice, assustada, levou a mão que segurava o lenço ao coração até se deparar com aquele rosto tão familiar. Não havia mais ninguém no carro, o que a deixou livre para usar o apelido de infância.

— Julico! Quase me matou de susto! O que faz aqui?

— Estou indo visitar a sua mãe. Dona Leonor me disse, hoje mais cedo na missa, que ela não estava nada bem. – respondeu o diácono, inclinando-se para abrir a porta do passageiro, enquanto Clarice contornava o veículo.

— Sim. Mamãe não anda nada bem. – concordou a moça tão logo entrou no veículo.

Júlio o colocou em marcha, observando a amiga pelo canto dos olhos. Suas bochechas estavam ligeiramente coradas, embora levasse um chapéu fino sobre a cabeça que lhe cobria os cabelos escuros e curtos. O pescoço alvo, adornado pelo colar com pingente em forma de gota, destacava-se contra a gola escura de seu vestido xadrez. Pousando as mãos graciosamente sobre os livros que posicionara sobre o colo, Clarice observava com preocupação a paisagem fora. O estado da mãe piorava a cada dia e era uma das poucas coisas que faziam com que o sorriso deixasse as feições sempre alegres da professora.

A Árvore dos Frutos Envenenados - Degustação Where stories live. Discover now