Epílogo

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LUCAS

Quando vivemos muito tempo no limbo, tudo acaba entrando na monotonia. As cores se tornam lembranças, assim como as formas e até mesmo quem somos. Os dias se tornam eternos, fazendo as mudanças naturais de nosso corpo, serem apenas citações de uma aula que tive certa vez.

O pior de tudo era saber que viveria assim para sempre. Dentro do meu mundo obscuro, onde o tom das vozes das pessoas com pena de quem um dia eu fui era nítido e gritante, se estendendo como eco na minha cabeça.

Não, eu não era mais o mesmo.

Eu havia perdido quem mais amava e sabia que meus tios não estavam preparados para receber um adolescente deficiente em suas vidas. Porém, ao contrário do que pensei, aprendemos juntos a lidar com a situação. Ultrapassando a contagem dos meus dedos ás vezes que gritei com raiva do universo por ter feito aquilo. Eu tinha tudo o que queria e agora era alvo de pena e comentários maldosos. Queria poder dizer a todos que não, eu não havia nascido assim. Eu era perfeito. Atacante do time, atraia atenção de todas as meninas e tinha os melhores amigos do mundo. Porém bastou um acidente, para perder tudo isso, menos uma coisa.

É engraçado quando somos adolescentes e brincamos de amar. Falamos essa frase tantas vezes que não percebemos o poder investido nela. Entre todas as garotas que fiquei e namorei, apenas uma se remetia ao verdadeiro significado dessa palavra. Apenas para uma eu as pronunciei e como se o universo dissesse: vou te dar mais uma oportunidade, acabamos nos esbarrando de novo. E dessa vez, eu não iria perdê-la.

Ao ouvir sua voz, percebi que entre todo o arquivo de imagens que se restará na minha memória, o rosto dela ainda era claro pra mim. Com o tempo, tais memórias vão se perdendo, mas com ela era diferente. Sua voz, seu rosto e até mesmo a letra da carta que me enviou. Pietra havia marcado meu coração, como uma tatuagem que nunca se apagaria de minhas lembranças. E ao ouvi-la, eu tive certeza que era ela, porém algo não estava certo.

Quando dona Maria contou o estado de sua neta para o senhor Silva, não podia imaginar que a garota dos meus sonhos estaria num estado tão terrível. Eu precisava ajudá-la, mas como? Eu não tinha nada para oferecer.

— Quem quer não arranja desculpas, Lano! — minha tia falou quando desabafei com ela certa vez.

E foi assim que aconteceu. Mesmo sabendo que ela não ficaria na cidade para sempre. Ou que poderia não gostar de mim e até me odiar por minha covardia em não ir no enterro de meu melhor amigo, eu não me importei. Já estava acostumada com seu ódio.

— O que você fez pra ela te odiar tanto? — Perguntou Ricardo certa vez ao vir me visitar.

— Sei lá, aquela garota é doida! — menti para evitar maiores estragos, se alguém fosse contar sobre a gente, que fosse ela. Manteria sua omissão pelo meu amigo, mas não via a hora de me deparar com ela, pra colocá-la contra parede na frente dele e ver que desculpa iria dar.

Infelizmente, isso não chegou a acontecer.

É, Ricardo fazia mesmo falta e ter ela ali, me fazia lembrar ainda mais dele. De quando falava dela, o que era quase sempre e eu tinha que concordar sem deixar transparecer meus sentimentos. Ainda mais quando soube que ela ocultou nosso lance de sua vida. Ele era meu melhor amigo e não via outra melhor pessoa para ele. Não pensei que eu furei o olho de Ricardo, porque além de uma expressão horrível, eu jamais faria isso com ele.

Eu o amava e sofri muito quando soube de sua morte. Ainda mais tendo falado momentos antes com ele. Porém assim é a vida. Acidentes acontecem e eu mais do que ninguém, sabia como era isso. E nem pensei nela durante o luto. Sua vinda foi uma surpresa e como uma oportunidade a se aproveitar, eu iria tentar.

Aqueles foram os melhores dias da minha vida. Pietra estava péssima e ao tocá-la pela primeira vez, senti que estava bem mais magra do lembrava e sabia que sua saúde mental e física não estava das melhores. Queria poder ajudá-la, mostrando que ela tinha o mundo em suas mãos e que perdas sempre vão acontecer em nosso caminho. Contudo, ela estava viva e podia ver todas as coisas nos seus mínimos detalhes e aproveitá-las. Que seu riso era sua força e para mim ela era a mais incrível de todas.

E como previa, Pietra se mostrou mesmo a garota diferente, não ligando pra minha deficiência e me fazendo sentir normal, como se de fato essa palavra existisse. Era como se eu pudesse ser o garoto que poderia amá-la e protegê-la naqueles momentos que passava ao seu lado. Me fazendo desejar aquilo para vida, mas as inseguranças eram enormes. Ela tinha objetivos e sonhos, e não queria ser a pedra de tropeço que a faria recuar novamente.

Porém, com o tempo eu aprendi que pra quem vive muito tempo no limbo, não se precisa fechar os olhos para dar um passo de fé. A gente apenas pisa e seja o que Deus quiser.

Isso já faz seis anos.

E este pensamento durou apenas alguns segundos até ouvir aquela voz. Eu podia sentir tudo o que estava acontecendo, como um vento que de repente aparece e logo se vai. Amor e paixão que não se explicava na lógica. Cada dor que ela sentia, cada contração fazia ela ter mais força, para poder olhar o que logo viria a ser o resultado daquele amor me fazia sentir o cara mais feliz do mundo.

Eu segurava firme sua mão, mas ela não escutava o que eu dizia, emitindo urros de dor. Sua mão apertava a minha, enquanto ouvia ao fundo o médico dizer para ela fazer força. Confesso que não imaginava tamanha emoção que aquele momento ocasionaria. Como se uma parte de mim, a parte perfeita de nós dois viesse apenas concretizar o "sim" que demos há três anos atrás.

De repente, tudo ficou em silêncio e ouvi-se o choro. A melodia mais forte e potente que preencheu meu coração.

— É uma menina — disse o médico

A emoção do momento tomou conta de mim, junto com o alivio de ter cessado a dor a dela. Sua mão se aliviou, mas não soltou da minha. Não demorou para ela pegar minha mão e direcionar a tocar a pele mais macia e fofa que podia sentir. Ela tinha bochechas redondas e suas mãos eram tão pequenas que se fechava apenas em um dedo meu.

— Você ouviu amor? — Pietra sussurrou de forma exausta mais sentia emoção em sua voz de choro — É o choro da nossa menina.

— É o melhor som da vida!

Dizem que na escuridão do limbo a esperança se encontra perdida, mas naquela mulher eu encontrei a lanterna que precisava pra acha-la. E entendi que tudo o que precisava estava ali com ela. Se nossa vida era boa e agora estava completa.

Fim! 

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