07- Misericórdia

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Acordei péssima na quinta-feira, minha única sorte até aquele momento era ter sempre as quintas só pra mim, já que minha irmã trabalhava longe de casa e sempre dormia no meu pai... aquele era o único dia em que me sentia livre, mas desta vez minha liberdade servia pra esconder o inchaço que o choro havia deixado no meu rosto... pode parecer que meu motivo não fosse pra tudo isso, mas não era só por isso que eu estava surtando, não é mesmo.

A mente humana é uma coisa muito bizarra, quando ela resolve te foder, não existe inimigo melhor, mesmo que a razão tente contornar todo e qualquer pensamento, existem coisas que quando surgem simplesmente te devoram e imaginá-las se beijando, ou até transando, era algo que eu não conseguia parar de pensar, só que quanto mais pensasse, mais angustiada ficava... juro que lutei muito contra aquilo, mas meu lado ruim me espancava com todas as coisas que havia sofrido, feito, ou deixado de fazer, por causa de Alice... por pensar em Alice.

Infelizmente não poderia simplesmente me afundar em meu travesseiro e esquecer que o mundo existia... não sei se comentei, mas é óbvio que durante todo esse período o bloqueio criativo que já possuía se agravou drasticamente... acho que não escrevia nada a muito tempo... nem sentia vontade... quanto mais em 2016... enfim... eu tinha que levantar, pois precisava ir até meu ex trabalho acertar minha demissão com meu chefe/tio... foi o que fiz.

Arrastada, como se o mundo estivesse sobre minhas costas, caminhei lentamente depois de descer do ônibus... nem reparei no caminho, por sorte meu corpo já sabia me conduzir sem precisar de meu cérebro, só não sei como atravessei as ruas até lá... são pelo menos umas quatro, mas cheguei... inteira, graças a Deus.

– O tio já tá por aí? – Perguntei pro meu primo, que trabalhava comigo lá e que continuaria após minha saída.

– Tá vindo.

– E aí? – Sorri. – Vai assumir o sábado?

– Deus me livre. – Brincou ele. – Tô fugindo de todas as formas, minha sorte é que tenho o curso de inglês, mas ele passou a semana comprando chip de celular pra tentar fazer o "siga-me" funcionar.

– E conseguiu? – Perguntei preocupada.

– Não. – Riu.

Como já comentei, o telefone fixo da empresa misteriosamente não funcionava em nenhum celular além do meu, mas o que não comentei é o que isso causava... o que acontece é que, devido a isso, meu tio não podia passear, ou viajar, aos finais de semana, porque o telefone só consegue fazer transferência pra outro número que seja fixo e nós sabemos que este tipo de sistema tem um limite de alcance, coisa que um celular não possui por ser originalmente móvel... o que me tornava útil.

– Quais operadoras ele tentou? – Perguntei rindo.

– Todas. – Riu. – Nenhuma funciona, nem a que você usa, o "siga-me" só pega no teu número.

Conversávamos ainda quando meu tio chegou, sério como nos últimos tempos andava estando... ele foi ao banheiro... eu e meu primo nos olhamos como quem diz "acho que ele não tá num bom dia"... eu também não estava tendo um, então já comecei a preparar meu psicológico pro que iria vir, principalmente pela lembrança da brilhante ideia de me fazer devolver os quarenta porcento do FGTS... meu pai achava melhor devolver e deixar isso quieto pra não arrumar briga, mas isso estava me corroendo, pois não achava justo.

– Então Aninha, senta aqui. – Me chamou meu tio. – Tava pensando, tem como eu deixar pra te pagar em fevereiro?

Estávamos em agosto e ele estava me perguntando se eu poderia esperar até fevereiro pra receber minha rescisão de contrato... seis meses praticamente sem auxílio desemprego e rescisão... respondi:

– Não tenho como esperar não.

Coisas que pra mim parecem surreais... juro que não conseguia entender o que estava acontecendo, mas Deus teve muita misericórdia de mim, pois essa história de desemprego já havia gerado discussões dentro de casa com minha irmã a respeito do meu curso e das contas de casa, onde ela sugeria que as contas eram mais importantes do que minha formação profissional... compreender, eu até compreendia o lado dela, mas não era assim tão fácil, eu estava estudando pela minha profissão e não tenho mais idade pra ficar adiando já que trabalho com minha aparência... imaginem meu desespero.

– Aquela sua proposta dos finais de semana ainda está de pé? – Me perguntou por fim.

– Está sim, sábados e domingos com o "siga-me" a noite por quinhentos e cinquenta reais, mais passagem e almoço... se quiser posso até dar uma limpezinha do escritório pra ajudar. – me arrependi de dizer essa parte do final tempos depois.

– Ah, então a gente faz assim, você continua com a gente aos finais de semana nesse esquema.

– Por mim tudo bem. – Respondi ainda sem acreditar no que tinha acabado de acontecer.

– Ah, então okay, sábado você vem então. – Nós nos despedimos e fui embora.

Sabe quando as coisas acontecem e você não entende como aquilo aconteceu?... eu havia implorado a Deus por uma ajuda, por uma resposta, por sua misericórdia, por qualquer sinal de fumaça e do nada eu simplesmente ainda tinha um emprego, mesmo que fosse ganhar bem menos do que ganhava antes, ao menos o meu curso estava garantido e era isso o que mais me preocupava.

Ele tentou, de todas as formas que podia, não precisar de mim e me mandar embora, mas por fim se rendeu à minha proposta em continuar... pra todos os efeitos foi por boa ação, foi pensando na formatura da sobrinha, nos estudos dela e eu até creio que este pensamento tenha influenciado sim porque ele é uma boa pessoa, mas adoraria pensar que tenha sido apenas por essa razão.

Naquele dia me senti extremamente feliz, mas não uma felicidade apenas por alegria, era na verdade uma felicidade em meio ao caos, talvez "alívio" seja um nome melhor ao sentimento que trazia no peito... não sei, só sei que fui embora quase chorando e agradecendo muito a Deus, porque tinha certeza de que havia sido Ele, em sua infinita misericórdia, a me ajudar e, em troca, não que Ele veja Facebook, mas como forma de agradecer, postei: "Não sei dizer exatamente o que move a mão de Deus, só sei que hoje Ele teve muita misericórdia de mim..."

À noite, no mesmo Facebook onde agradecia por minha benção, surgiu uma foto de minhas duas "amigas", Alice e Sophia, que nem sabiam pelo que eu passava, juntas na tal balada, pra onde iriam mais uma vez naquela noite... "A loira fecha comigo" disse Alice na foto representando a quarta-feira... "Iniciando mais uma noite com a minha ruiva" disse Sophia na foto representando a quinta-feira... que comece então minha depressão... ao menos com menos um problema pra me preocupar, graças a Deus, mas com vários outros por acontecer.


Obs: Comente, curta e compartilhe. ; )

LGBT - Aos Meus Olhos - 2016 Parte 2Where stories live. Discover now