Naquele momento, a garota me olhou pela primeira vez. Mediu-me dos pés à cabeça e franziu o cenho. Muito possivelmente meu estilo despojado de vestir não condissesse com o perfil dos clientes habituais da Dr. Pet, mas eu estava ali, em pé, diante dela, com uma pinscher impaciente no colo. Então, esforçando-se para sustentar a simpatia, pediu meus dados e começou a preencher rapidamente meu cadastro.

- Estou terminando de fazer uma ficha para o senhor e para... como se chama a mocinha linda no seu colo?

- Vishnu – eu disse, num tom sem graça.

- Nome lindo – ela sorriu. Enquanto digitava, observei que seus seios pulavam discretamente, conforme os braços se mexiam. – E o que ela tem?

- Diarreia – inventei, dizendo a primeira doença que me veio à mente.

- Tadinha... Deve ter comido alguma porcaria. Cachorros são assim – ela prosseguiu com a digitação frenética até que, de repente, parou. Jogou uma mecha de cabelo preto atrás da orelha e me encarou: - Pronto, agora, só o senhor aguardar. A Dra. Marina ainda não chegou, mas o Dr. Osvaldo está atendendo na Sala 2.

Acho que, ao ouvir aquilo, não consegui disfarçar minha expressão de decepção e desespero.

- Mas me recomendaram a Dra. Marina... – eu disse, enquanto Vishnu, impaciente, mordia minha mão.

- Ela já deveria estar aqui, mas vai atrasar. Está resolvendo alguns problemas particulares – a garota informou, confusa diante de minha reação. – Mas o Dr. Osvaldo é um excelente veterinário. Os clientes gostam muito dele.

- Mas a que horas a Dra. Marina chega? – insisti, decidindo arriscar.

Vishnu cravou os dentes nas costas de minha mão, arrancando pele e um pouco de sangue. Contive-me para não xingar a cadelinha psicopata de Mago e limitei-me a sorrir, aguardando a garota de peitos enormes dizer-me algo.

- Bom, ela já deveria ter chegado. Acho que não vai demorar – a garota disse, um tanto sem graça. – Em todo o caso, o Dr. Osvaldo está atendendo agora, e ainda restam dois clientes na sua frente. Se o senhor quiser aguardar, provavelmente a Dra. Marina chegue até sua vez de ser atendido.

Assenti e agradeci. A garota devolveu-me o sorriso, aparentemente satisfeita por ter me convencido a esperar. Mal sabia ela que, com aquele decote, não era necessário muito esforço para que me convencesse de alguma coisa.

Acomodei-me no sofá ao lado da mulher e do pastor alemão. Pareceu-me a decisão mais acertada manter-me longe da schnauzer, que havia voltado a encarar Vishnu e a rosnar.

Passaram-se cerca de 20 minutos quando Mago finalmente entrou na clínica, esbaforido. Encarou-me com espanto e eu acenei para que se sentasse ao meu lado.

- E aí? – ele cochichou. – Já falou com a doutora gostosa?

- Não – respondi, rispidamente. – Ela ainda não chegou. Sou o terceiro na ordem dos atendimentos; temos que esperar.

Mago espichou-se no sofá, esticando as pernas.

- Por mim, tudo bem. Estacionei em área de Zona Azul; você paga, mano.

Assenti. Mesmo porque eu não sairia daquele lugar sem pelo menos trocar meia dúzia de palavras com aquela mulher, a tal Marina. Os pesadelos tinham que parar, e eu estava convencido de que acabar com meu martírio passava obrigatoriamente por saber mais da mulher que povoava meus sonhos.

A hora passou lentamente. Os ponteiros do relógio redondo preso à parede da recepção deslizavam lentamente entre os números, como que por pirraça.

Já beirava a hora do almoço, e eu aguardava minha vez. Eu perguntara duas vezes se a Dra. Marina havia chegado, e a garota da recepção passou a me encarar de modo estranho, arredio, possivelmente pensando que eu era algum tipo de perseguidor, ou tinha segundas intenções com a doutora – e, de fato, tinha.

Vishnu havia se acomodado no meu colo e dormia tranquilamente. Mago entretinha-se com uma revista sobre animais de estimação e, vez ou outra, interrompia a leitura para me lançar perguntas como: "Você sabe qual é o cão mais comprido do mundo?", ou, ainda, "Adivinhe o nome da raça de cachorro mais popular no Afeganistão".

- Deve ser a cadelinha do Osama Bin Laden – retruquei, contrariado.

- Você é um ogro que não aprecia cultura inútil, mano – ele disse, voltando a mergulhar na leitura.

Eu estava pronto para responder à provocação quando me deparei com uma mulher de cabelos cobreados passar pela porta de vidro da clínica. Trazia uma bolsa a tiracolo e um jaleco verde-claro, com o logo da Dr. Pet, caído sobre o braço esquerdo.

- É ela! – eu disse, sobressaltado, cutucando Mago.

Marina – sim, era o nome ela – percorreu o olhar pela sala. Além de nós, outros dois clientes haviam chegado e esperavam nos sofás, mas era minha vez de ser atendido.

Seus olhos cruzaram os meus, mas, aparentemente, ela não me reconhecera. Pelo menos, não esboçara qualquer reação.

Foi então que notei os sulcos escuros sob os olhos de Marina e sua expressão exaurida. Havia algo errado.

Ela trocou algumas palavras com a recepcionista, de cujos seios eu jê havia me esquecido. Assentiu, dizendo algo e exibindo um sorriso anêmico, e, em seguida, dirigiu-se para a sala de atendimento, passando por uma porta branca.

- Agora, é só esperar – disse Mago. – Logo, logo, você estará cara a cara com a mulher dos seus sonhos.

Eu ouvi, mas não respondi. Ainda pensava sobre o que poderia estar acontecendo com Marina e em sua expressão abatida.

Foi nesse momento que algo bastante insólito e perturbador aconteceu. Vishnu, que dormia aninhada em meu colo, ergueu a cabeça empinou as orelhas. Olhava para um canto da sala de espera e rosnava; os pelos em seu dorso estavam arrepiados.

- Ei, o que foi garota? – perguntou Mago, afagando a cabeça do pequeno demônio.

Segui o olhar de Vishnu e detive-me no canto que a cadelinha encarava furiosamente. Não havia nada ali, mas, de repente, um zunido estridente soou em meus ouvidos.

Levei as mãos às orelhas e curvei-me, com dor. Vendo-se livre, Vishnu saltou de meu colo e correu para o canto da sala, latindo ferozmente. Os outros dois cachorros (um labrador chocolate e um vira-lata malhado) também começaram a latir, ensandecidos.

- Vishnu! – Mago correu em direção à cadelinha, enquanto eu me contorcia de dor.

Gradualmente, o zunido diminuíra. Quando se tornara quase inaudível, uma voz (aquela voz, a mesma dos meus pesadelos) ecoou em minha cabeça. Era praticamente um sussurro, misturado com um chiado semelhante ao de um guincho.

Ajude ela, por favor. Você me deve.

Saltei do sofá, colocando-me em pé.

"Devo? Devo o quê? Quem é você?".

Olhei em volta, e notei que todos me encaravam. Os cães já haviam se acalmado e Vishnu estava acomodada no colo de Mago, que caminhava em minha direção, encarando-me.

- Mano, cê tá bem? – perguntou.

- Não, acho que não. Eu...

Estava pronto para explicar a Mago o que havia acontecido, mas fui interrompido pela garota de seios enormes que, dirigindo-se a mim, disse:

- O senhor pode entrar – novamente, ela sorria. – A Dra. Marina está aguardando na Sala 1. 

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⏰ Last updated: Jul 03, 2018 ⏰

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