Capítulo 23

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01 de julho

Existem infinitas formas de enxergar o mundo. Uma só lente não é o suficiente para abranger as cores e sabores que pairam no ar, dispersos pelo vento repentino de uma tarde seca de inverno que colore de tons de cinza as nuvens que recobrem o céu.

Ainda assim, há quem insista em organizar de forma desconexa a realidade que existe diante de seus olhos. Certo e errado, debruçados em uma discussão infinita sem resposta, sem solução, sem fim.

Era através da lente de sua câmera que Vicente enxergava grande parte do mundo, onde desfocava e iluminava tardes frias, por onde escolhia onde mirar. Seus olhos, seus próprios olhos cor de mar, mal enxergavam o mundo lá fora, escondidos por detrás de pálpebras pesadas que, como cortinas, fechavam sua mente para o que não interessava.

Talvez não fosse a mais sábia das atitudes. Talvez a escolha de fugir daquilo que é incômodo o fizesse viver em uma bolha onde o mundo perfeito existia, apesar de ele estar mais do que ciente de que não era o caso. Mas a verdade é que a seletividade em seu olhar o rendera muitos méritos. Quando sua atenção estava focada para aquilo que o interessava e seu tempo não era perdido em interações forçosas que em nada acrescentavam em seu crescimento pessoal, tudo que estava no seu campo de visão era ampliado.

Vicente era mestre em ver por detrás dos panos, cortinas, muros construídos para proteger segredos. Desvendava sorrisos e olhares, desbravava almas. E, ainda assim, parecia não saber o que fazer com a sua própria.

Permitiu-se desligar os pensamentos enquanto testava o novo jogo que tinha acabado de instalar no celular. Seus dedos acertaram a tela com violência enquanto em seus ouvidos explodia a música animada. Cores e formas brilhavam diante de seus olhos que começavam a arder. Devia piscar, isso resolveria o problema, mas não o fez. Não por escolha consciente, mas simplesmente porque o que era o melhor a ser feito nem sempre era o mais conveniente no momento. Nem sempre as escolhas certas são aquelas mais sábias. A ardência era melhor do que perder seus tão preciosos pontos.

Não sabia ao certo quanto tempo passou ali, sentado de costas para uma árvore que enfeitava a calçada feita de pedrinhas pretas e brancas da orla da praia vazia. Não estava deserta, jamais estaria, e ele entendia o motivo. Sentir a areia enroscando por entre seus dedos era uma sensação única. O cheiro de maresia, o som das ondas se movendo levavam para longe todos seus anseios e preocupações, prendendo em suas correntes todo o peso de uma vida a ser vivida, deixando apenas a paz contemplativa nos olhos dos que se aventuravam em suas águas.

Suas águas geladas de ressaca moviam-se em uma dança própria, coreografia particular que jamais era repetida. Uma apresentação única e inédita a cada segundo, a cada olhar, em um espetáculo apreciado apenas por aqueles que se permitissem sair de seu casulo e desbravar o mundo com seu olhar atento. Era a metáfora perfeita para a vida, ciclo interminável que se repetia a cada manhã. Ainda que parecesse estar mergulhado em uma rotina constante, cada passo era único e sempre levava a um caminho diferente.

Vicente sentiu a garota sentar-se ao seu lado, jogando o corpo no chão sem qualquer delicadeza, a mochila sendo arremessada sem cuidado aos seus pés. Laura depositou um beijo apressado em sua bochecha enquanto lutava contra o cabelo na tentativa de domar os cachos rebeldes desobedientes. Sua boca movia-se com rapidez, palavras jorrando de sua garganta em um ritmo frenético que transparecia com perfeição o estado de espírito da garota. Ele sorriu, puxando o fone de ouvido, sendo agraciado, enfim, com o monólogo que se desenvolvia diante de seus olhos.

— ... eu realmente não sei qual o problema dele. Como se eu não tivesse o suficiente pra me preocupar. Mal conhecei a estudar para as provas, meus pais vão me matar se eu repetir em alguma coisa. — Ela fez uma pausa e engoliu o ar em um suspiro profundo. Balançou a cabeça como se estivesse tentando se livrar das preocupações. — De qualquer forma, desculpe o atraso. Fiquei presa no trabalho. Bianca já está chegando — ela disse, conferindo rapidamente o celular antes de enfiar o aparelho no bolso da frente da mochila.

Obsidiana FraturadaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora