10. Traços em branco

155 26 56
                                    


Sob a monotonia dos meus dias, vi os minutos incalculáveis passarem através das lentes da luneta. Vigiei a lua desde a manhã até a negritude invadir os céus. A escuridão se fez presente e combinou com meu vazio, preenchendo-me, pouco a pouco, como a manta inteira a crosta; de maneira que eu fosse o núcleo protegido.

No instante que contar as estrelas me cansou, vim para a cama. O lugar exato onde estou neste momento. Embaixo das cobertas macias, encarando a parede tatuada de pôsteres com partes da galáxia. O durex de um deles, inclusive, está a descolar, o que deixa uma das pontas soltas. Divirto-me em balançá-la com o indicador.

Contudo, o giro da maçaneta interrompe meu movimento outrora contínuo. Recolho a mão para baixo do edredom e fecho os olhos, fingindo não estar mais acordado.

O som da sandália de minha mãe contra o chão é reconhecível. Misturando-se no ruído, posso identificar alguns múrmuros por conta da bagunça. Ao julgar pelo barulho, ela arremessa a camisa que usei durante a manhã na mesa do computador. Escuto, a seguir, o tintilar de uns papéis.

— O que é isso? — sussurra consigo mesma, mas posso ouvi-la.

Curioso, abro um dos olhos e espio-a cautelosamente.

— Somos nós sob as estrelas... — analisa. — O que é essa bola atrás?

Mamãe gira em torno de si, a observar as paredes. Posso vê-la esboçar um sorriso, no ponto em que associa meu círculo torto à Vênus. Rapidamente, passa a folha para trás, avistando outro desenho. Ela varre os olhos pelos traços, enquanto solta outra risadinha.

Deduzo, devido à ordem em que os fiz, que a moça quem me deu à luz esteja a encarar minha viagem através do buraco negro. De fato, ficou confuso. Como representar algo desconhecido? São traços invisíveis. Uma nave rompida pela dúvida e um espaço vago, assim como a minha mente.

Outra vez, minha mãe muda de papel. De súbito, suas sobrancelhas se juntam; os olhos se espremem, arregalando-se em seguida. No susto, ela derruba tudo o que tem nas mãos. Uma delas cobre os lábios. Não sei se ela tenta inibir um possível grito ou está chocada com o garrancho. Para aumentar a minha dúvida, os olhos zangados marejam.

Agacha-se, a pegar os desenhos revirados e coloca-os na escrivaninha. Antes que eu possa prever, mamãe caminha em minha direção. Cerro os próprios olhos de imediato. Cuidadosamente, ela se senta na beirada da cama. O dorso de sua mão passeia pela minha bochecha. Ouço-a fungar. De repente, seus lábios me aquecem.

— A mamãe ama você.

Sua voz é tão baixa que pode, facilmente, ser confundida com um sibilo.

Outro beijo, desta vez na testa, faz-se presente, antes que ela se levante e deixe o cômodo. As regiões onde encostou há segundos estão umedecidas, o que me avisam que as lágrimas vistas presas em seus olhos transbordaram.

Às pressas, pulo para fora da cama e corro para ver o que a desesperou tanto. O desenho de cima é a minha representação em vênus, com um dos braços erguidos, afastado pela terra, marte e júpiter de saturno, onde, aprisionada pelos anéis, está Iris também com um dos braços estendidos.

Logo atrás deste, posso notar a marca úmida de dedos na folha em que retrata um menino sentado nos anéis de saturno, assistindo, cabisbaixo, a terra se desfazer com dois adultos sobre ela. Eu, solitário, a ver os meus pais destruírem o que demorei a conquistar.

Os traços são imprecisos, é possível chamá-los de rabiscos. Porém, de forma crua e sem ambição, representam o que abriga meu interior. Extravasei minhas emoções com a arte, assim como aprendi com Dr.ª Patricia.

Ruídos de SaturnoWhere stories live. Discover now