PRÓLOGO

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20h45 PM

Não pense.

Não chore,

Apenas corra.

Sua pele clara ganhava riscos vermelhos à medida que entrava na mata. Era praticamente impossível ver os galhos pontiagudos e firmes escondidos na vegetação rasteira cortando suas pernas. No céu a lua, escondida atrás das copas grandes e fechadas, mal iluminava o chão. As árvores eram apenas vultos passando no canto dos olhos. O sangue corria freneticamente ao pé do ouvido como milhões de formigas fugindo de um formigueiro em ruínas, deixando um fino e agudo pio ecoar pelo cérebro, reverberando pelo crânio, diminuindo seus sentidos, deixando-a tonta, sem noção de profundidade.

Olívia tropeçou e perdeu o equilíbrio até suas mãos encontrarem o chão coberto de folhas molhadas; sentiu o pulso estalar com o impacto, obrigando-a a jogar o corpo para o lado afim de amortecer a queda. O pulmão queimava no peito, o ar criando peso, se embolando nas vias respiratórias. Secou uma lágrima, sujando o rosto de lama ainda deitada sobre o solo, letárgica, os pensamentos sendo processados devagar, quase anunciando que iriam parar a qualquer momento. Precisava continuar correndo, mas não tinha noção para onde; olhava ao redor e só enxergava vastidão de sombras, grandes como muros escuros; a percepção debilitada levou e trouxe, repetidas vezes toda a imagem que os olhos captavam. Estava quase desmaiando, e caso acontecesse, seria sua perdição, a achariam, finalizando assim o que pretendiam: mata-la.

Tateou no chão, cegamente, em busca da faca que carregava antes da queda e ao encontrar, segurou-a, pondo nela sua última chance de sobrevivência, a única defesa contra alguém que não via, mas sabia que a espreitava na mata, se misturando com todos os pequenos olhos curiosos que brilhavam atrás dos arbustos.

Levantou o tronco do chão, trazendo à tona uma dor lancinante que percorreu por cada parte do seu corpo, se instalando no meio das costas, embriagando seus sentidos ao ponto de fazê-la pensar, por breves segundos, que havia perdido o movimento das pernas.

Colocou o objeto próximo ao peito com uma mão, tomando cuidado para que a ponta da lâmina ficasse longe do corpo, e com a outra apoiou-se no joelho, dando impulso para levantar-se. Sentiu os músculos tremendo enquanto colocava-se de pé e, tentando achar forças nos confins da alma, pôs-se a correr, o vestido branco que usava — do qual pendia nos ombros pelas alças, não passando de frangalhos — tremulando ao vento, transformando-a, na escuridão da mata, em uma alma penada vagando pelas trevas.

De súbito, como se atravessasse um portal para outro mundo, as copas das árvores se dissiparam acima de sua cabeça, revelando um grande círculo branco orbitando ao lado de micro pontos brilhantes no céu. Olhou para trás, para a floresta fechada procurando quem a perseguia, sem se dar conta no precipício que se formava à centímetros dela, somente o viu quando ao dar um passo, seu pé não achando sustento, lançou-a para frente, em direção a uma vastidão de sombras.

Tentou virar o corpo na esperança de agarrar alguma coisa, porém só encontrou o ar; o vento fazendo os fios de cabelo taparem o rosto, não o bastante para impedi-la de ver, saindo por entre as árvores, a figura da qual fugia: a mulher de cabelos louros e cacheados.

Logo abaixo, exatamente no mesmo instante em que despencava e seu coração acelerava ao ponto de fazer o braço formigar e uma dor aguda perfurar o peito, um homem digitava ao celular, a atenção difusa intercalando a concentração entre o aparelho e a estrada escura; os dois feixes de luz clareando o caminho sinuoso.

Ele não desacelerou o carro no momento do impacto, apenas soltou o aparelho e segurou firmemente no volante, sobressaltado, tentando não perder o controle do automóvel que girava na pista, desenhando marcas negras no asfalto; cacos de vidro estavam espalhados por todo corpo, a janela dianteira despedaçada, fumaça rodopiando para o céu.

O homem sentiu sua carne tremer quando finalmente o carro parou, a mente enevoada tentando analisar a massiva demanda de informações que explodia como um vulcão em erupção. Havia um corpo sobre o seu capô amassado, os membros repousados em ângulos diferentes.

Desprendeu o cinto de segurança, abriu a porta, as pernas descontroladas dificultando de manter-se em pé. Lembrou a si mesmo que precisava respirar, colocar ar em seus pulmões, enquanto dava a volta no automóvel. Não sabia exatamente qual seria o próximo passo, o que faria em seguida, apenas continuou pondo um pé na frente do outro, assustado com o que encontraria.

Então parou, como se sua mente tivesse entrado em estado vegetativo. Não acreditava na imagem que os olhos enviavam ao cérebro.

Aquele rosto, mesmo ensanguentado e com fios de cabelo encobrindo boa parte, lhe era familiar, tão familiar que por um momento era como se a liga que junta a alma ao corpo perdesse a força de tal forma que apenas jogando-se ao chão poderia saber que ainda permanecia vivo e não flutuava rumo ao além. Encarou a mão que pendia ao lado do corpo, mais precisamente para o anel no dedo anelar, o mesmo anel que carregava em seu próprio dedo. Ali, sobre o carro estava sua esposa, ou pelo menos o corpo dela.

A OUTRAWhere stories live. Discover now