Remember

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Sem data.

Anos depois

-Ela é linda.

Concordei com um sorriso de lábios comprimidos enquanto ainda observava aquele pequeno ser repousado em seus braços, seus olhos abertos analisavam todos como se fosse a primeira vez, de fato era e me sentia meramente culpada por poder presenciar aquela cena apenas agora.

As bochechas rosadas pareciam convidativas para leves apertos e minha sobrinha quebrava toda a linha de raciocínio que insistia na tese de que bebês nasciam com rosto de joelho, ela era simplesmente a criatura mais linda que eu já havia visto.

-Quer pegá-la?

-Eu posso? E se derrubá-la?

-Você saberá segurar. Pegue-a.

Lia me ofereceu o frágil pacote enrolada por várias camadas de diversos cobertores, aceitei receosa relembrando das minhas possíveis falhas e suando frio ao notar vários olhares esperançosos em cima de nós, não gostava de demasiada atenção.

Ao encaixar seu corpo reparei em seus cabelos ainda ralos, quase escassos e olhos amendoados de cor esverdeada, talvez quando crescesse eles poderiam escurecer e até mesmo acentuar outros tipos de formatos.

Admirei impressionada o fato de que a sensação de um bebê em meu colo fosse estranhamente familiar e levantei os olhos sorrindo encontrando rostos animados, mas não surpresos, eles acreditavam em uma habilidade que eu nem mesmo sabia que era dotada.

-Ela gostou de você, normalmente chora com todos que a peguem.

Lia exclamou enciumada e segurei o fato de que provavelmente me tornaria a tia mais boba possível e que seus ciúmes não eram válidos, ela era a mãe, eu nunca poderia preencher seu espaço.

-Já escolheram um nome?

Mudei o teor da conversa curiosa pois de todas as informações, uma das mais importantes não haviam sido faladas.

-Apresento a você,Lisa, sua sobrinha Elisa.

Minha visão embaçou e os senti marejados, não era esperado isso, minha vida corrida não possibilitava grandes viagens para lhes verem e nem mesmo mantinha uma relação tão íntima com Lia, nossas conversas poderiam ser consideradas saudáveis, como duas colegas do ensino médio que se reencontram anos depois de formadas.

Após um agradecimento emocionado e diversas conversas paralelas as pessoas passaram a irem embora aos poucos e quando o sol começava a se pôr no horizonte concluí que seria a minha deixa.

As ruas daquela cidade ainda pareciam tortas como da última e me esforçava para lembrar de algo que prendessem minha atenção a elas.

Nada.

Me encaminhando a passos curtos até a casa que supostamente cresci passando pelo pequeno bosque com a ponte que fazia ligação com dois bairros, os raios solares iluminavam a madeira e me senti tentada a ir observar mais de perto o espetáculo de luzes.

Pisei nos degraus e a cada passo sentia Déjà-vu, fortes traços de memórias e a sensação da cabeça parecer pesada, nunca havia passado por ali neste horário e tudo parecia puxar-me para a borda, meus pés criavam vida e se locomoviam de acordo com os fios de lembranças que insistiam em projetar borrões na minha mente.

E então desde o meu olhar turvo ao sonho de cores azuis, as brigas causadas pelo meu temperamento difícil da infância e as constantes humilhações se juntavam como peças de um enorme quebra-cabeça. As ruas pareciam mais retas agora.

Eu lembrava.

-Lisa! Lisa! Lisa! Acorde, por favor.

Escutei um choro baixo e minhas pálpebras impulsionaram a abrir se chocando com a claridade do ambiente em tons pastéis.

-O que aconteceu?

Murmurei entorpecida e com o corpo dolorido, provavelmente cheio de hematomas enquanto minha cabeça latejava pedindo por descanso, eu sabia que estava longe de atender ao seu desejo.

-Escorregou na borda e se afogou no bosque.

-Não é a primeira vez.

-Você se lembrou...

Lia fechou e abriu a boca diversas vezes tentando encontrar palavras certas para continuar sua frase e talvez uma explicação, havia muitas pessoas naquele quarto e rostos cheios de pena eram evidentes, agora eu me recordava dessa sensação.

-Foi o melhor a ser feito.

Olhei atordoada para minha mãe com seu semblante cansado sem qualquer resquício de culpa após dizer isto, a mulher que me gerou a vida havia escondido parte dela.

-Você foi um caso raro de Amnésia Psicogênica, nada a fazia lembrar dos primeiros anos da sua vida e continuou assim até que desistimos e resolvemos evitar que você convivesse com o trauma.

Isaac complementou e senti a necessidade de chorar, o bolo crescia na garganta e o engoli a seco, a minha Lisa verdadeira não gostava de chorar.

-Naquele final de tarde você pulou para me ajudar quando escorreguei nas folhas no chão. Seu pé se manteve preso a arbustos, mas ainda salvou a minha vida.

Tudo fazia sentido.

A cor da água do bosque era azul e por algum motivo agora conhecido, eu gostava dela por me fazer útil.

Útil por ter salvado uma vida, a vida da minha irmã mais velha.

-Há ainda mais alguma coisa que precisa saber.

Todos encararam Isaac com olhares de repreensão e caretas semelhantes as que fazia quando algo não me agradava.

Voltei meu olhar para ele e suas feições jovens esperando uma continuação, ele parecia o mais disposto a me revelar a verdade.

-Seus traumas da adolescência e infância foram simplesmente apagados, a pancada na sua cabeça junto aos momentos de impacto provocaram uma série de lembranças presas. Foi a sua forma de lidar com os problemas.

Meus batimentos aumentavam e o vazio que sempre existiu na minha mente, em parte, havia se recuperado, eu não realizava mais o papel de coadjuvante da minha própria existência e aquilo de certa forma preenchia por completo os espaços em branco da minha consciência.

Passei dias a visitar o mesmo bosque e brincar com as suas folhas em formato de trevo, também prometi a mim mesma que por mais que pudesse existir ainda a hospedeira que contava com os meus traumas, a Lisa atual viveria melhor por nós duas e seria permanentemente a atriz principal, sem necessitar de ter conhecimento dos dois lados. Se a minha própria consciência propiciou uma forma de me livrar dos traumas, quem seria eu para contradizê-la?

"Num sentido mais profundo, existem memórias que não sabemos que temos e que podem emergir, chegando à consciência, sem que saibamos exatamente o porquê"

Sidarta Ribeiro.

"Freud representa essa ideia usando a metáfora do iceberg como um modelo da mente, onde a maior parte está submersa. A atividade mental consciente corresponderia apenas ao topo visível"

Marco Callegaro.





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