A espera

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Ao meio dia.

Uma hora. Parte ínfima de um ano inteiro e, como sempre vinha acontecendo, ela era a personificação da ansiedade. A noite mal dormida apoderava-se de quase toda sua pele clara em forma de enormes olheiras.

Ela ouvia o tic tac do relógio, as crianças correndo e gritando pela rua, as campainhas tocando a todo momento, exceção à sua. Não podia ser incomodada, e nem se distrair um segundo sequer. Nos outros 364 dias sim, não nesse.

Doze horas. Ouviu o badalar do relógio e prendeu a respiração. Era chegado o momento. Olhos concentrados no círculo de pedras sobre o chão de madeira e na fumaça do incenso que dançava no ar.

Um minuto e nada. Não entendia porque não tinha dado certo dessa vez e seu corpo estremeceu. Aquele atraso carregava apenas um significado.

Dois minutos e ela continuava sentada olhando os anéis da madeira que um dia suprira com vida a floresta vista pela janela aberta. Cada fragmento que compunha aquele pedaço de chão havia sido escolhido à dedo. As mais antigas, as mais sábias. O círculo formado pelas pedras esculpidas de forma metódica. O banho de purificação. Tudo estava como devia, mas nada acontecia.

Retomou o cântico de chamamento que entoara durante toda a manhã e que invocava a força de seus ancestrais. Uma lágrima rolou por sua bochecha e mesmo assim seus lábios reproduziam as palavras que surgiam em seu coração e que os uniam por breves e felizes momentos depois de um ano inteiro de exílio.

Ela sabia que um dia se depararia com a realidade de ter a solidão como companheira, mas nunca esperara ser tão cedo. Uma maldição que levava sua juventude e que a privava do amor que não conseguia conceber ser tão proibido a ponto de aprisiona-los daquela forma.

Pegou com as mãos trêmulas o grimório que repousava aberto ao seu lado e releu todo o processo. Passou os dedos rapidamente sobre as letras já desgastadas e suspirou constatando o que já sabia. Estava sozinha naquela sala que se tornara sua ancora de esperança ao mesmo tempo em que era seu cárcere. Desejava como louca que aquele espaço se enchesse com a presença dele. Sua aura preenchia todos os vazios daquele lugar e de seu peito. Não queria conceber o que tinha acontecido dessa vez.

A dor que sentiu ao perceber que ele não viria a obrigou a dobrar-se até encostar a testa no chão. O tecido azul do vestido restringiu seu movimento e ela puxou a manga que resistiu por alguns segundos antes de ceder fazendo um eco sussurrado de agouro vibrar pelas paredes. Puxou novamente. As mangas, a gola e a saia esvoaçante partiram-se e gritaram a dor que a queimava por dentro até que se transformassem em um amontoado de tramas presas por poucos fios que resistiram a sua fúria.

O círculo intacto e vazio mostrava sua triste realidade. Restavam ainda muitos minutos e não desistiria. Esfregou as mãos, ajeitou o pano destruído sobre seu corpo, respirou fundo e esperou. Precisava se apegar a menor possibilidade e continuaria, ano após ano, a tentar.

Ansiava por poder ver aqueles olhos negros, os cabelos encaracolados, o sorriso deslumbrante, o corpo concebido para venerá-la, mas naquele momento tinha que alimentar somente as lembranças... Da primeira vez que tinha conseguido trazê-lo... a surpresa... o suspiro de alívio... e o desalento ao perceber que não podiam se tocar. Ele ficava restrito àquele pequeno círculo pela única hora em que o sol estava em seu ápice, no dia de celebração à abundância e à Deusa.

Ouviu um leve toque na porta, mas ignorou. Para evitar ser incomodada, deixava uma cesta repleta de doces do lado de fora. Aquelas vinte e quatro horas eram as que mais sugavam suas energias. A preparação, a entrega e por fim o isolamento a deixavam ressequida por dias.

Ouviu novamente o leve toque em sua porta e tapou os ouvidos

Os minutos. Esses não tardaram a findar. E alguém continuava a bater a sua porta.

Levantou abruptamente do chão. Ignorou o fato de ter deslocado as pedras do círculo e correu até a porta com uma única intenção.

Abriu a porta de forma abrupta, mas tomada pela surpresa com a imagem que se avolumava à sombra do carvalho que estranhamente se projetava até a casa, apenas engoliu em seco. As lágrimas escorreram atrapalhando sua visão, o corpo convulsionou e as pernas bambearam.

Poucos segundos agora a separavam da primeira hora. Sentiu o polegar acariciar sua bochecha e estremeceu. Não era possível. Nunca foi. Quinze anos sem um único toque. Nem ultrapassar a barreira etérea do exílio do tempo. Mas ele tinha conseguido algo que ela não fora capaz de realizar.

As mãos tocaram-se brevemente antes da hora findar e uma leve bruma apoderar-se do corpo daquele que ela amava e carrega-lo para perto da árvore sagrada. Antes que ele desaparecesse por completo ela jurou ter ouvido uma frase.

Ouviu algo caindo ao chão. Uma pedra rolou para longe e parou dentro do círculo de pedras. Ela correu, agarrou a pedra morna, levou para perto do peito e fechou os olhos, exausta.

Caiu. Os cabelos chicotearam sua face, as pedras arranharam sua pele e o eco de seu grito foi o último som ouvido antes da explosão.

Crianças gritaram assustadas. Sirenes soaram pela tarde toda e o jornal do dia seguinte estampou a manchete levada pela fumaça negra. "Tragédia no dia das bruxas. Jovem desaparece em incêndio."

Ninguém soube explicar o círculo de madeira que permaneceu intacto quando os escombros foram retirados, nem os calafrios que percorriam as peles dos mais destemidos. Todos tinham medo de chegar ao fim da rua e ver aquele local que mais parecia um altar. Para além da notícia da tragédia, a história se espalhou.

Quem ousava se aproximar na metade do dia jurava ver um vulto azulado seguido de um grito agonizante. Quem ousava se aproximar na metade da noite jurava ouvir um cântico entoado com o vento.

- Só mais um ano.


******


Escrevi esse conto pensando exatamente no Halloween e apesar disso ele não precisava ser de terror, não é?! Sou uma pessoa fofa demais para isso... ou... simplesmente não tenho coragem de imaginar cenas que causem medo com seres malignos que querem sugar nosso sangue para um ritual ou... enfim... não deu! 

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(imagem: freepik.com)

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