O mar e a tempestade

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Ela queria ser sereia

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Ela queria ser sereia. Ainda criança vivia com a cara enfiada na janela do quarto em frente ao mar. Proibida de ir à praia, saía furtivamente vestida como um menino para caminhar na areia, coletar conchas e evitava colocar os pés na água. Quando isso acontecia ela podia jurar que uma tempestade se formava em questão de segundos e ela corria de volta para casa esperando não ser vista pela avó, que a mantinha sob vigilância. Ondas em fúria castigando a terra, céu em brasa iluminando a imensidão com fragmentos de luz e ela não descolava o nariz do vidro. Na mão, uma das centenas de conchas de sua coleção.

Quando o dia clareava e as ondas se acalmavam, ela corria e enfiava os pés na areia. Podia jurar que via uma barbatana aqui e ali. Momento onde os seres aquáticos saiam de seu refúgio depois da querela.

Desejava ver as escamas crescendo sobre sua pele, os pés mudando de forma e que a levariam para as profundezas, mas só conseguia vislumbrar seu anseio em sonhos.

Parada sobre a prancha precária de madeira em seu mais recente ato de rebeldia, pés inquietos dentro do sapato apertado e ombros caídos com o peso da mala que um dia fora marrom, encontrada no sótão da casa vazia de Eusébio Dantas, ela olhava embasbacada o tecido gigante esvoaçar formando asas que nunca alcançavam o céu.

Sem levar em consideração ao alerta da avó de que "mala de morto tem que ficar em terra para não atrair mal agouro" ela caminhou para dentro da embarcação. Durante toda sua vida desejara ver o mar. Não da areia da praia, nem da janela do quarto ou mesmo do alto do Xarino - nome da colina mais alta da ilha.

Sorriu com a movimentação no convés. Homens andando de um lado para outro, esbravejando palavras que ela desconhecia, carregando malas, caixas e sacolas, e outros tantos, assim como ela, de boca aberta com a vida própria da embarcação que balançava levemente em um bailado ditado pelo ritmo do mar. Seus pés praticamente sapateavam sobre o chão de madeira. Vestida como um rapaz, algo imposto pela avó desde que era uma menininha em busca de aventura a beira mar e que nunca entendera, ela tinha que manter uma postura indiferente, mas verdade era que estava segurando a vontade de correr, alisar a balaustrada com as mãos, apalpar as cordas grossas e abrir o braço enquanto emitia um som qualquer. De vitória, lógico.

Finalmente ganharia as águas e nada, nem ninguém a impediria de ver a vastidão azul sob o casco daquele navio. A Ilha das Dilbas ficaria ao longe e ela alcançaria o continente. Lugar de perigos, pessoas diferentes e muita cor. Não se importava em dar asas a sua imaginação.

Rapidamente percebeu que em sua imaginação tudo era mais bonito. Até o cheiro a incomodava. Seu estomago revoltado era como um aviso de que estava fazendo tudo errado.

Não conseguia mais ver a Ilha das Dilbas. O que antes era sua casa, passou a ser um pequeno ponto no horizonte para, em seguida, desaparecer. Era isso que almejara durante tanto tempo, no entanto, não conseguia vislumbrar o encanto que seria estar flutuando sobre as águas escuras e salgadas. Na realidade, aquilo estava se tornando uma tortura. Se conseguisse organizar seus pensamentos, desejaria poder voltar para a segurança da terra, ao sonho de alcançar algo que parecia impossível. Às vezes o sonho é bem melhor que a realidade. Em sua cabecinha fértil tudo seria muito diferente do que estava experimentando e isso era terrível demais para aceitar. O gosto amargo e azedo em sua boca e a tontura que sentia era um alerta de que sua avó sempre tivera a razão. "Não temos escamas, por isso a terra é nossa mãe."

Assim como ela, algumas pessoas pareciam estar nas mesmas condições e talvez com os mesmos pensamentos. Aquela tortura duraria ainda mais um dia, até poder finalmente colocar seus pés em chão firme. Imaginava o que teria que passar para poder voltar para a ilha. Seu sonho sempre fora desvendar o mar, sentir a emoção de estar sobre suas águas, experimentar a sensação de liberdade, o vento salgado sobre sua pele e voltar. Pertencia a um lugar, apesar de desejar ser outro alguém.

Em sua miséria não viu o céu escurecer, as nuvens se avolumarem de forma ameaçadora e as luzes cruzando e riscando o céu. Em sua miséria não percebeu os movimentos aumentarem. Estava tão mal que não saberia distinguir nada além da falta de controle de seu corpo. Só se deu conta que algo estava muito errado quando ouviu um grito de pânico e o som de algo muito pesado caindo sobre o convés.

Naquele breve momento de lucidez ela correu acompanhando as demais pessoas com olhares amedrontados e só então percebeu a fúria das águas quando todos foram jogados para o lado de forma bruta. Perdeu o ar por alguns instantes, sentiu a água gelada molhar seus pés e ouviu o estrondo no céu. Uma tempestade! Quase foi capaz de sorrir.

Como sempre fazia, caminhou até uma janela. Sabia que aquele não era o nome correto, mas preferia assim chamar para poder ter a falsa sensação da segurança de sua casa. Encostou a testa no vidro gelado e assustou-se com a enorme onda que atingiu toda a embarcação, jogando mais uma vez as pessoas para longe. Ela, inclusive.

Gritos de instruções, gritos de medo, preces e choros ecoaram pelas paredes de madeira até chegarem aos seus ouvidos confusos e ela só conseguia pensar que precisava ver tudo o que estava acontecendo. Ignorando o chão molhado sob seu corpo, engatinhou até a sua janela. Ninguém tinha coragem de ir até ali, somente ela era brava o suficiente. Convenceu-se disso ao levantar e novamente olhar para fora enquanto um raio cruzava o céu. Foi nesse exato momento que ela viu. Tinha certeza do que vira. O brilho verde azulado que vislumbrou por um instante ficou impresso em sua retina. Ela sabia o que aquilo significava.

Tomada por uma vontade insana de gargalhar, comandou seus pés até a porta escancarada que a levaria até o convés totalmente esquecida que tinha que interpretar um papel, o de um rapaz viajante. Soltou os cabelos presos sob um chapéu já perdido na confusão. Alisou-os com os dedos e sentiu o sabor de liberdade em cada fio que esvoaçou com o vento que tentava castiga-la. Seu andar tornou-se natural, com o gingado que era constantemente repreendida por possuir, mas naquele momento ela sentia o prazer e a necessidade de mostrar sua sensualidade.

Alcançou o convés e quase foi jogada de volta para dentro com o vento forte que soprou. Viu homens lutando para manter a nau flutuando e sorriu. Uma nova onda. Um novo e forte impacto e seu corpo foi arremessado. Dessa vez não foi ao chão, nem arremessada contra a parede. Sentiu seu corpo flutuar por breves instantes para em seguida ser abraçada pelas águas bravias. O gosto salgado invadiu seus lábios e ela não foi capaz de fazer outra coisa, senão sorrir.

Seus olhos se adaptaram rapidamente à água, que estranhamente, era tão translúcida quanto o vidro de sua janela. Viu a enorme vela do navio sendo carregada para as profundezas e teve a sensação que finalmente ela estava livre. Não alcançaria os céus, mas estava voando.

Livrou-se dos sapatos pesados que calçava e ao invés de nadar para a superfície seguiu o tecido que lhe mostrava o caminho. Na superfície o caos, ali, o silêncio e a calmaria que ela sempre buscara.

Ela não percebeu, mas uma nova onda atingiu a embarcação que lutava bravamente para manter-se na superfície e algumas coisas foram lançadas ao mar. A velha mala de Eusébio Dantas entre elas, e um mar de conchas de todos os tamanhos e cores se espalharam na água. Era o que de mais valor ela possuía e como num passe de mágica, se viu envolta por um redemoinho de beleza ímpar que grudava em suas pernas, formando uma carapaça, impedindo-a de mexe-las da forma que sempre estivera habituada.

Tentou se livrar das conchas que mais pareciam ventosas em seu corpo e quando novamente viu a luz verde azulada, ouviu uma voz e soube o que fazer.

- Vem!

E ela foi. Seguiu o tecido, imitou o movimento ditado pela água e desapareceu nas profundezas. O mar era seu lar.





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