Capítulo 20

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Harry deixou Kyra no centro comercial, o mais longe possível da igreja, e estacionou próximo à praça arborizada, onde o cheiro de chocolate quente e biscoitos saia da cafeteria e as pessoas andavam pelas calçadas a passos lentos. Se despediu de Kyra com um beijo roubado, olhando para os lados temendo ser visto, se sentindo como um adolescente com medo dos pais. É claro, não deveria se preocupar mais com essas trivialidades, mas não conseguia se livrar dos velhos hábitos.

Já tinha tomado café, mas comprou um jornal e sentou se no balcão ao fundo da cafeteria com uma xícara de chocolate quente. O jornal ainda dizia algo sobre "Mistério: Caso da morte dos Lodge continua sem solução". Ele correu rapidamente os olhos pela matéria, que dizia sobre como a polícia encarava o caso e ainda não tinha pista dos assassinos.

ㅡ Lendo sobre os Lodge, Padre?

O xerife se senta ao seu lado no banco vazio.

ㅡ Um café duplo por favor. ㅡ Pediu a garçonete.

Harry sacudiu a cabeça.

ㅡ Alguma novidade? ㅡ Perguntou ao xerife.

ㅡ Estamos às cegas. ㅡ O velho colocou o rádio comunicador no bolso traseiro do seu uniforme e coçou seu bigode branco. ㅡ Ouvi dizer que o senhor deixou a paróquia.

Ele sorriu um pouco desconcertado, não tinha porque esconder coisas como essa. Provavelmente, toda a cidade já soubesse o motivo.

ㅡ Estou dando um tempo. Redefinindo minhas prioridades. ㅡ Soou como o bispo falando mas não se importou.

ㅡ E levou aquela garota Jones com você, uh? ㅡ O velho deu uma risada maliciosa e a sua barriga saliente tocou o balcão, a garçonete trouxe o café do velho e se retirou com um sorriso forçado. ㅡ Desculpe padre, mas é o que estão dizendo, meu jovem. Ainda posso te chamar de padre, não é? É difícil se livrar desse habito.

ㅡ Tudo bem. ㅡ Harry respirou fundo. ㅡ Eu não me importo com o que dizem. Pode apenas me chamar como preferir, xerife.

O velho deu outra risada alta, mas ninguém sequer olhou na sua direção.

ㅡ Tenho uma pergunta lhe fazer, sim? Mas veja, padre, é apenas algo informal. ㅡ Ele tossiu. ㅡ Você estava com a garota Jones no dia da morte de Amélia?

Harry sacudiu a cabeça sem entender a pergunta. Não esteve com Kyra quando aconteceu, no dia, voltou sozinho a antiga casa hipotecada dos Jones para buscar o resto das coisas de Kyra.

ㅡ Eu estava ajudando Kyra com a mudança.

ㅡ É, estive conversando com alguns vizinhos, ressaltaram sobre isso. Apenas queria confirmar com o senhor.

ㅡ Porque a pergunta, xerife? Está suspeitando que Kyra tenha algo a ver?

O velho curva suas sobrancelhas grossas e parece bastante sério.

ㅡ Não deixamos isso escapar, padre. ㅡ Ele sussurrou olhando para os lados. ㅡ Nem mesmo para os malditos repórteres. Entende? É informação confidencial. Mas o senhor, ah o senhor tem sido o túmulo de tantos segredos dessa cidade, inclusive da minha esposa Katherine, que Deus a tenha.

Harry acenou para que ele prosseguisse.

ㅡ A chave reserva da que Amélia deixava embaixo das samambaias. ㅡ O xerife prosseguiu. ㅡ Desapareceu.

Harry o olhou surpreso agora.

ㅡ Como assim desapareceu? A filha dela não pode simplesmente ter pegado?

ㅡ Perguntamos a ela, estava muito nervosa, foi a primeira coisa a se notar. Então nós acreditamos que o assassino esteja por aí com a chave, assim entrou na casa.

Ele ergueu as sobrancelhas e tomou um pouco mais do seu chocolate quente.

ㅡ Ainda não entendo onde o senhor que chegar com Kyra nessa historia...

ㅡ Meu jovem. ㅡ O xerife diz com um olhar complacente. ㅡ Ainda não sabe não é? Ninguém fala sobre isso. Mas foi Amélia que chamou a polícia quando os Jones foram encontrados mortos. Kyra estava escondida na dispensa. Amélia foi uma das primeiras a dizer que a garota tinha feito tudo aquilo. É claro, nós investigamos, mas ela era apenas uma criança, entende? Como uma criança colocaria um homem de 80 quilos em uma forca e esquartejaria uma mulher de duas vezes o seu tamanho? Amélia Lodge bateu o pés sobre isso, tivemos de investigar até o final, mas o caso não batia. Eu mesmo achava que era um absurdo, mas a gente vê muita coisa estranha nessa vida do crime, vai por mim.

ㅡ Isso... isso é terrível.

ㅡ Eu sei, a garota que você escolheu é meio problemática. Você sabe, tenho que perguntar essas coisas por aí, meu jovem. Nada formal, é só uma conversa entre amigos. ㅡ O velho xerife coçou o bigode também intrigado. ㅡ Parece que o caso está se repetindo. E o pior é que ninguém quer falar sobre isso, me sinto preso como um coelho numa caçada, padre.

ㅡ Você está querendo dizer então, que Kyra é suspeita porque uma Amélia espalhava boatos sobre ela para toda a cidade?

ㅡ Se você quiser encarar assim, é você que está dizendo, padre. Ao menos que ela tenha uma chave reserva de estanho nas suas malas. ㅡ Ele riu alto outra vez e bebeu o resto do seu café e deixou uma nota de cinco no balcão. ㅡ Já ia me esquecendo, há outra coisa estranha sobre o caso.

ㅡ Isso parece um pesadelo.

ㅡ Nem me diga. ㅡ O velho torceu os lábios. ㅡ Mas é sobre o caso dos Jones. Amélia chamou a polícia naquele ano, mas foi antes da hora da morte dos Jones, foi muito antes de quando ela e os outros vizinhos disseram que os gritos começaram. Ela disse "há alguém morto naquela casa do demônio." Como ela poderia saber que alguém ia morrer pelo menos uma hora antes? O pior de tudo, e que só notamos isso quando esbarramos com o Kyra se mudando bem no assassinato de Amélia e seu marido.

Ele coçou o bigode outra vez e Harry pressupôs que fosse algum tipo de mania estranha.

ㅡ Eu posso dizer com segurança, xerife. Kyra seria impossível de fazer algo assim. Ela mal sabe lidar com os próprios problemas, quanto mais articular algo assim. Prometo ao senhor.

ㅡ Eu não sei de nada, meu jovem. Estou tão perdido quanto você. ㅡ O velho bateu no ombro de Harry e sorriu. ㅡ A sua benção, padre.

ㅡ Deus lhe abençoe. ㅡ Disse no automático e tocou o seu rosário outra vez. Ficou olhando o xerife ir embora e entrar na sua viatura.

Pensou por um momento sobre tudo que tinha ouvido. Mas não sabia o que achar sobre aquilo. Queria fazer perguntas como essas a Kyra, mas teve medo que ela sequer se lembrasse ou que provocasse outros surtos. Talvez todo o trauma, tenha causado o surto. Talvez, em algum lugar lá dentro, Kyra tenha visto quem foi o assassino.

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