A Louca dos Gatos

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Primeiro, ele comenta com Gilberto, que trabalha na Mercearia do Carmo, na esquina com a Rua 23 de Setembro. Gilberto, que mora algumas ruas acima, também esquina com a 23 de Setembro, disse nunca ter visto a moradora do 616 e que agora isso fazia sentido, pois ela podia ser louca. E, por conta disso, talvez fosse melhor que ela nem frequentasse seu estabelecimento. E quem frequentava seu estabelecimento e ouviu a conversa foi Roberta, inquilina da casa 621, praticamente em frente à casa dos gatos.

Nessa noite, o jantar com seu marido, Cláudio, foi intenso. Ela disse que precisavam cuidar melhor da casa, principalmente porque em alguns meses seu bebê iria nascer. E ela não queria que o bebê crescesse logo em frente à casa de uma louca, da Louca dos Gatos. Cláudio, despreocupado como sempre, disse que provavelmente isso era boataria. Qual era o problema de uma mulher ter nove gatos em casa? Roberta afirmou que ouvira do diagnóstico dela diretamente de Gilberto que ouvira de Plínio, pai de Patrícia que estudava enfermagem! Logo, só podia ser verdade.

E, durante o futebol da semana no campinho que ficava na praça no início da rua, Cláudio comentou também com os outros homens da rua sobre o possível diagnóstico da "moça do 616", ou chamada de "A Louca dos Gatos". Algumas crianças da rua que também iam ver os adultos jogarem - e que usavam o campinho para seus jogos e brincadeiras em outros horários - acabavam ouvindo esses comentários e eles ajudaram a espalhar a ideia de que a moradora solteira do 616 seria louca por ter vários gatos.

A dona Maria, a beata do 215, tia de Alexandre que jogava bola no campinho, foi uma que não gostou de ter ouvido isso. Ela levava essas histórias da rua muito à sério e tentava preservar os bons costumes desde que viera morar naquela casa que era de seu marido, agora falecido. A Viúva Sanchez, como era conhecida, fazia questão de organizar as festas religiosas na rua, geralmente no campinho, e agregava todo mundo para novenas de Natal, festa de São João e celebração de Páscoa, com a presença de missa a céu aberto proferida pelo pároco do bairro, da igreja local que ficava a alguma quadras de lá. Mas, seu maior orgulho, era justamente a celebração de Corpus Christi, pois ela fazia questão de montar, na frente de sua casa, o melhor tapete para a procissão até o campinho onde a missa era celebrada.

Apesar de jovem e sem filhos, Maria Sanchez escolheu não se casar novamente, e dizia a todos que se mantinha eternamente fiel a seu marido, mesmo ele tendo morrido em um acidente de trânsito cinco anos antes, e mesmo ela recebendo visitas periódicas de um senhor bastante distinto, em horários de pouca movimentação na rua.

Quem percebera isso foi Patrícia numa noite voltando da faculdade. Naquela noite especialmente ela saíra mais tarde da aula e pegara um ônibus mais tarde ainda. Ela chegou depois da meia noite e viu a viúva se despedir com um carinho mais do que apropriado - principalmente se fossem familiares - um homem de terno e gravata, que pegava um taxi que acabara de chegar para buscá-lo. E, obviamente, Patrícia comentou com seu irmão, Paulo, que estava na sala assistindo ao final de um jogo de futebol. Mas ele não deu bola e Patrícia logo esqueceu também do ocorrido.

Mas Paulo levou à sério a conversa dos outros homens a respeito da Louca dos Gatos e, quando isso voltou para a casa de Patrícia, ela recebeu a notícia como confirmação de sua hipótese. A final de contas, se todos estavam falando a respeito, deveria ser verdade! E todos estavam falando muitas coisas a respeito. Paulo chegou a dizer que ouviu de Flávio que alguém tinha reportado barulhos estranhos vindo daquela casa, como se estivessem sacrificando algum animal. E disse também que o jovem Alexandre comentou que sua tia jurava que a Louca dos Gatos podia até ser uma bruxa se passando por louca e que fazia magia negra com seus animais.

Plínio ficou preocupado, principalmente porque ele mal via a moça do 616. Ele resolveu perguntar ao carteiro a respeito dela, pois ele percebera que praticamente toda semana ela recebia alguma coisa dos correios. O carteiro só disse que ela recebia muitas encomendas e que sempre foi muito educada e gentil. Mas, agora que Plínio comentou a respeito, ele ficou preocupado também se ela não seria de fato louca ou bruxa. A final de contas, não é normal ter nove gatos em casa.

O carteiro, naquela semana, aproveitou uma entrega para o 621 e perguntara se eles conheciam a moradora do 616. Mal fazia um ano que estavam alugando a casa e o contrato era para três anos e Roberta já estava pensando em quando poderiam se mudar de lá. Cláudio foi enfático em dizer que ele não sabia de nada e nunca tinha visto nada de diferente. O carteiro aceitou as respostas e seguiu em frente.

Mas o que Cláudio não contou é que ele via a vizinha sim, todas as noite, ao menos sua silhueta. Esse era o horário que ela saia do banho e sua sombra sempre refletia na parede do quarto e Cláudio imaginava quem era a moça. Sim, moça, pois quando ela saia do banho e ia para o quarto se trocar, antes de fechar as cortinas, Cláudio conseguia ver bem que ela não tinha mais do que 25 ou 30 anos e que estava muito bem de saúde. Isso, é claro, ele nunca contou para sua esposa, como também nunca contou que quando ela dormia, ele vestia seu melhor terno - que ele usava apenas em situações especiais, pegava um taxi que dava a volta pelo bairro antes de deixá-lo na frente da casa 215 da mesma rua. Isso, com certeza ele nunca iria contar para sua esposa, mas ele tinha certeza que nem a Viúva Sanchez iria falar, a final, ela era eternamente fiel a seu falecido marido.

Outra coisa que Roberta nunca iria saber era que os amigos de Cláudio, que jogavam futebol com ele, também tinham seus segredos. Flávio perseguia Patrícia durante seu trabalho, tendo certeza que tudo estava bem com ela. E também vendo com quem a moça conversava. Uma vez ele viu Patrícia se engraçar com um rapaz da faculdade, o André, que recebeu naquela noite uma visita do policial do bairro, avisando-o a ficar longe da estudante de enfermagem. Patrícia não entendeu o que aconteceu com o distanciamento do colega, mas ela simplesmente continuou sua vida, morando com seu pai e irmão.

Paulo, irmão de Patrícia, era outro que possuia segredos. Ele adorava rir das piadas de gays e viados feito pelos amigos, mas secretamente, ele não queria aceitar que ele também era homossexual. Muitas vezes ele saia com Ricardo para rir da cara das travestis que faziam ponto em outro bairro afastado. Até um dia que um dos travestis quase reconheceu Paulo de uma festa onde os dois se divertiram muito juntos. Nesse dia, essa travesti apanhou até ficar inconsciente e largada na sarjeta. Plínio, seu pai, descobriu o que aconteceu e fez questão de manter silêncio, mas no fundo estava orgulhoso de seu filho, pois sabia que ele era homem viril, macho e forte e daria um excelente pai quando finalmente se casasse com sua noiva - apesar de estarem já quase cinco anos noivos e nunca marcaram a data do casamento.

De todas as pessoas da vizinhança, talvez a que menos tivesse segredos fosse Bia, a moradora do 616. Ela tinha apenas gatos, nove deles: Calíope, Clio, Amora, Lira, Eros, Mel, Poly, Talia, Viola e Astro, todos castrados e vacinados. Seus gatos eram sua vida e ela nunca os escondeu de ninguém. Ela cuidava dos nove como se fossem filhos, levando-os sempre ao veterinário e cuidando de tudo o que precisava. Ela trabalhava com vendas online e sempre recebia encomendas de novos produtos para avaliar e disponibilizar para venda em seus vários sites. Ela também fazia muito do que precisava fazer via internet, então não precisava comprar nada na mercearia do Gilberto.

Sempre que ela queria, ela saia para ver suas amigas que moravam em outras partes da cidade. Ela tinha um carro pois achava mais confortável sair com o próprio carro do que pegar um taxi quando ela precisava sair com algum de seus bichanos para uma consulta emergencial ao veterinário. Mas seus filhotes - como ela chamava seus gatos - eram bem auto-suficientes para fiarem dentro de casa quando ela não estava e ficar apenas no quintal da casa quando ela deixava as portas e janelas abertas. Nenhum deles jamais pulou o muro - que fora cercado para evitar isso - ou escapou pelo portão da frente, que possuia grades para evitar saídas dos gatos para a rua.

Apesar de ser a única moradora da Rua do Carmo com nove gatos em sua casa, a vida de Bia era tranquila e normal. Ao contrário do que podemos dizer do restante dos moradores peculiares de lá.

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⏰ Last updated: Sep 22, 2017 ⏰

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