A Sala dos Espelhos

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Antero era um sonhador. Mas não daqueles sonhadores esperançosos. Ele se lembrava de praticamente todos os seus sonhos, bons e ruins. Isso começou depois de sofrer bastante com pesadelos na infância. Ele mal conseguia dormir. Mas seu pediatra recomendara que procurasse terapia, pois medicação hipnogênica em um cérebro tão jovem poderia ser prejudicial. Seu terapeuta na época começou a trabalhar bastante com seus sonhos e o incentivou a começar um diário de sonhos. Com o tempo, ele começou a acumular cadernos com seus sonhos relatados e a intensidade dos pesadelos começou a diminuir. Principalmente quando ele começou a treinar a ter sonhos lúcidos.

Ele criou um ritual. Várias vezes durante o dia, ele estalava os dedos três vezes e sussurava "eu estou acordado". E, fazia isso principalmente quando estava diante de um letreiro ou algo escrito e se focava nas letras por pelo menos uns quinze segundos. Esse ritual, de tão habitual, passava a ser feito também enquanto sonhava e isso passou a fazer com que ele percebesse que de fato estava sonhando. E, diante dos pesadelos, ele simplesmente acordava quando percebia que não valia a pena continuar sonhando com aquilo.

Em seu pesadelo mais recente, Antero sonhava que estava dirigindo seu carro por uma rua movimentada, com muitos prédios e comércios abertos, quando ele avistou um leito de hospital no meio da rua. Ele diminuiu a velocidade e parou do lado do leito para ver do que se tratava, quando viu, deitado sobre o leito, um corpo de uma mulher, presa por amarras. Antero não sabia dizer se a mulher estava morta ou apenas desacordada. Ele via que outras pessoas se aproximavam, a maioria deles, moradores de rua. Um deles, inclusive disse, "não se preocupem, o especialista está chegando!" e em breve, de fato, ele chegou. Mas parecia mais um fugitivo de hospital psiquiátrico, carregando um cutelo sujo em uma mão e um pé congelado na outra. "O que vocês vão fazer?" perguntou Antero. "Não se preocupa, o especialista sabe o que 'tá fazendo!" Esse especialista, então deixa o pé congelado ao lado do pé da moça e usa-o como medida. Remove as amarras do pé direito e se prepara para cortá-lo com o cutelo, quando aquele primeiro homem diz, "Não precisa agora, vamo' lá p'ra dentro", e começou a empurrar o leito em direção a um galpão no final da rua. Foi quando Antero percebeu que aquela não era uma região comercial, mas sim de velhos galpões e indústrias abandonadas, todas ocupadas pelo que pareciam ser sobreviventes de instituições psiquiátricas abandonadas. Ele também começou a perceber outros pedaços de corpos espalhados e pensou que deveria chamar a polícia, mas para isso, precisava saber onde estava. Ele olha em volta e procura algum letreiro, placa de rua ou nome de loja e, ao avistar uma, tenta focar no nome, que rapidamente muda de forma e ele não consegue ler. Ele até tenta chamar a atenção de uma pessoa que estava em uma das janelas de um dos prédios Foi quando Antero percebeu que estava sonhando e de que não precisava passar por aquilo e acordou. Em outros tempos e seu suas práticas e exercícios, Antero teria ido até o fim com o sonho e provavelmente teria visto coisas das quais desejaria desver.

De diário de sonhos, Antero migrou para aplicativos de sonhos. Nesses aplicativos ele conseguia anotar com facilidade e recordar dos sonhos quando precisasse, inclusive os que ele tinha quando tirava sonecas no meio do dia. Também, uma vez a cada seis meses, ele fazia o download de seus sonhos e os imprimia, guardando em uma pasta junto com seus outros cadernos e diários de sonho, continuando com seus rituais. Antero às vezes sentia que sua vida era mais vívida nos sonhos do que acordado, mas sabia diferenciar as duas realidades por conta de seus rituais.

Antero, então, deitou-se para dormir e começou a sonhar. Em seu sonho, ele se encontrava em uma sala cheia de espelhos, como se estivesse em um parque de viersões. Muitos desses espelhos distorciam sua imagem e alguns, inclusive mostravam cenas que ele não gostou de ver. Um desses, por exemplo, mostrou-o dentro de um cemitério, de noite, com vários túmulos abertos e revirados, alguns mostrando corpos em decomposição a seu aberto, outros semi-enterrados. Outro espelho mostrou o seu corpo em forma espectral, translúcido e brilhoso, dentro de um casarão de época, com móveis de veludo e uma lareira acesa ao fundo, como se ele fosse o fantasma assombrando aquela residência. Diante desses espelhos, ele estalou seus dedos três vezes e disse "eu quero acordar agora" e de fato acordou.

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