Os Novos Pecados Capitais

A Louca dos Gatos

Toda vizinhança possui suas pessoas peculiares. E a vizinhança da Rua do Carmo não era diferente. Mas as pessoas peculiares desta rua eram incrivelmente comum, com exceção da Louca dos Gatos.

A Rua do Carmo era uma rua relativamente comum em um bairro residencial na periferia da cidade. Por algum motivo - talvez pelos velhos tempos antes da ditadura, quando as pessoas ficavam na calçada conversando entre si - os contatos nessa rua nunca se desfizeram e foram passados adiante como herança, junto com suas casas. Muitas delas já estavam na terceira geração, como a casa número 341, da família Ramos.

O patriarca da família resolveu se aposentar e ir morar na praia, deixando a casa para seu filho, que havia se casado no ano anterior. Agora, com três filhos homens, Ricardo Ramos é um orgulhoso corretor de seguros que se gaba de ter segurado praticamente todas as casas da rua, além de várias outras pela cidade. Quase todas as casas, pois ele nunca conseguiu nem chegar perto da casa 616, a casa da Louca dos Gatos.

Ricardo sempre conversa com seu vizinho de frente, Flávio Dias, do número 338. Flávio é policial militar e solteiro e sempre vem com piadinhas sobre a moradora - também solteira - do 616 - do tipo que mesmo ele na seca nunca chegaria perto dela, pois loucura pode ser contagiosa e ele não pode correr o risco. Além disso, quem é que teria nove gatos em sua casa? Uma pessoa assim só pode ter problemas mentais mesmo.

Mesmo solteiro, Flávio estava de olho em Patrícia, a filha mais nova do mais velho morador da Rua do Carmo, lá no 412. Todos os dias que Patrícia saía para o trabalho de manhã, lá estava Flávio, fardado, coordenando o horário para passar em frente à sua casa e desejar-lhe bom dia. E de noite, quando ela voltava da faculdade - onde estudava para ser enfermeira - lá estava ele também, voltando de seu plantão. Flávio conseguiu, inclusive, marcar sua ronda diária no bairro onde Patrícia trabalhava e de vez em quanto ele a via almoçando com as amigas nos restaurantes locais. Mas ela, aparentemente, nunca percebera sua presença por ali

O pai de Patrícia, Plínio Cavalcante, era aposentado do Banco do Brasil e mesmo tendo condições de morar em um lugar melhor, nunca quis sair da casa onde vivera sua vida toda. Ele tinha outros três filhos, dois deles casados e morando fora do Brasil e outro noivo com planos de ir morar no Canadá. Seu maior orgulho era ter conseguido formar seus filhos para sair do país, ir viver em lugares melhores, mesmo que ele nunca tenha feito isso. Publicamente, ele diz que está ainda ajudando Patrícia em sua formação, mas assim que ela estiver independente, quem irá sair do Brasil será ele e Patrícia herdará sua casa. Ela nunca comenta a respeito.

Pra falar a verdade, Patrícia é bem reservada e quase não conversa com ninguém da vizinhança. O máximo que ela se sente confortável é em reciprocar os bons dias de Flávio e em levar - de vez em quando - pequenos petiscos para os gatos do 616, que fica no caminho do ponto de ônibus. Sempre que ela prepara as comidas da semana no domingo, ela guarda uns pedacinhos de carne, frango, porco ou peixe e na segunda de manhã pelo menos dois ou três gatos estão no portão esperando a passagem da moça dos petiscos. A dona da casa nunca pareceu se incomodar com o gesto.

Mesmo assim, Patrícia - futura enfermeira - preocupa-se com a saúde dela e com a presença de nove gatos na casa. Gatos são conhecidos vetores de doenças e se a casa não for amplamente higienizada, pode-se acumular sujeira que também não faz bem à saúde. Recentemente, nas aulas de saúde mental, a estudante encontrou uma pesquisa que associa casos de esquizofrenia a lares que possuem gatos, por conta da bactéria Toxoplasma Gondii que pode ser uma das causas da doença mental. Em conversas com seu irmão e pai durante às noites, Patrícia comentara sobre o estudo e do medo que ela tinha de a dona dos gatos pudesse ter esse mal. E Plínio, em seu ócio de aposentado, deu-se ao trabalho de divulgar a "notícia".