10 - Segundas impressões

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As horas passaram rapidamente. Laura deu-lhe um vestido vermelho antes que Ana tomasse banho, num banheiro que ficava próximo à cozinha. A menina estranhou o fato de sua avó deixá-la demorar o tempo que quisesse. Logo Ana descobriu que o jantar a faria conhecer algumas pessoas daquele local, onde seus avós insistiam em dizer que era onde ela havia nascido. Era um jantar especial, um costume muito apreciado ali por todos quando recebiam um parente ou amigo distante. Com ela não seria diferente.

- Muito bem, senhoras e senhores. Hoje é um dia de suma importância para todos nós aqui presentes, e alguns que não puderam vir - Disse o homem chamado Erasmus. - Neste dia tão especial, celebramos a volta da nossa querida Anabel, filha de Eivar como nós, ao nosso convívio novamente. Juntemo-nos, neste jantar, a Alex e Laura, com o único intuito de participar de sua alegria! Caros amigos, caros cupinchas. Como todos nós sabemos, eles passaram anos a fio sem pistas do paradeiro desta tão preciosa garotinha, até que num dia a pouquíssimo tempo - dia este que ficará marcado em suas mentes e corações, bem como nas nossas, seus próximos - o jovem habitante da nossa vila chamado Elias, aquele mesmo que todos nós conhecemos, com um sonho misterioso e revelador, mostrou-lhes uma direção. Sim, eles apenas acreditaram e foram em frente. Que sirva de exemplo para todos. Acreditaram, tiveram fé, e graças a essa fé, conseguiram achar a garotinha. Não antes, é claro, de contrariarem nossas opiniões lamentavelmente pessimistas, de que tudo não passaria de besteira de uma criança, de um sonho infantil de um garoto imaginativo. Confesso que por um grande período de tempo fui um tolo que também não acreditou nisso, registro aqui o meu mais sincero e contrito perdão por tão anti solidária atitude. Mas para sua sorte estávamos todos errados, Completamente errados! Ana está aqui conosco agora. Portanto, eu em nome de toda Eivar, desejo-lhe as boas vindas, e que seja muito feliz entre nós todos. Um brinde a Anabel!

O jantar era um javali assado acompanhado de pães, arroz, e diversas frutas cítricas. Dali em diante todos trataram de encher suas respectivas barrigas, sem muita conversa. Os convidados começaram a refeição, e pareciam bem felizes. Elias não tirava os olhos de Anabel (parecia ver um fantasma) e ela fazia o mesmo. Ali se reuniam quinze pessoas, sem contar ela e seus avós: o senhor Orejas, um homem baixo, gordinho e moreno, já meio calvo, usava óculos pequenos que não tinham pernas e ficavam apoiados em seu nariz. Do seu lado esquerdo, estava o Sr. Krammerstronstwait, este com cabelo em demasiado a ponto de não se saber diferença dele para seus bigodes, pois se confundiam a ponto de esconder o rosto (a barba se confundia com o bigode, o bigode com as costeletas, as costeletas com as sobrancelhas e as sobrancelhas com os óculos, e tudo se confundia com o resto de seus cabelos), e para combinar o sujeito usava um sobretudo preto, cobrindo o resto do corpo a partir do pescoço, além das luvas pretas. Vieram também os irmãos Sigfried e Alfred (conhecidos também como Mauricio e Felício), ambos usando roupas de cozinheiro mesmo não sendo cozinheiros. Quando questionados, diziam ser a ultima "moda" (provavelmente na casa deles); havia a Senhora Lemos; o anão Peter e sua mulher; Erasmus e Emerson, junto ao mestre carpinteiro Antônio, e Leila. Leila era tia-avó de Anabel, que a cumprimetou com um breve sorriso e havia chegado atrasada, sem falar direito com a irmã; Hélio Lívio, os jovens Silas e Alberto, e no canto o grande Di Castilli, fabricante de guarda-chuvas e meias sub-aquáticas.

- Foi a senhora quem preparou? - perguntou o anão Peter (cinco segundos antes de levar um chute por debaixo da mesa, vindo de sua esposa) a Laura, que respondeu com um sorriso. - A comida de lá de casa nem se compara a essa. Tem gente que não está com uma boa mão por esses dias.

- E então Ana, como se sente agora que está com teus avós? Eles te procuraram por muito tempo - disse o senhor Di Castilli, sentado ao lado de Ana. Ela reparava na reluzente camisa listrada em preto e branco dele. Era um homem moreno, muito parecido com os indianos daquele sonho de duas noites antes.

- Bem - sorriu ela.

- Mas achas que vais ficar, não é?

- Acho que sim.

Laura observava a conversa de todos, sem dizer uma única palavra.

- Mas é claro, garota! - intrometeu-se Silas. - Se sentisse saudades eles podiam trazer todo o seu orfanato para cá, se fosse o caso. Não tema, logo estará acostumada.

- A propósito, alguém me pode dizer onde está o Mud? Ele não veio hoje, e continua com a tal historia de um mago "Presente" que eu não sei o que significa e se isolou lá para os lados das colinas - disse Alex, tocando carinhosamente a mão da neta.

- Você fala o lado dos amontoados infinitos de feno?

Sim, Erasmus, lá mesmo. Mud está meio "zen" por esses tempos. Eu queria falar com ele que os caleidoscópios fabricados na Rua do Outeiro estão ficando excessivamente caros. Só comprei uma dúzia. Quero que ele faça mais alguns para mim.

- Alguém aqui já leu sobre isso no diário de Gilso Tricot? - Perguntou Erasmus, com a boca cheia.

- Hahaha, sim. Tabloides! Eles dizem que esse tal mago é uma espécie de espião de outra dimensão e que pode estar entre nós. Mas vocês lembram bem, não? É que Mud antigamente era o guardião das chaves de Lugar Nenhum, o responsável pela administração das suas masmorras. Depois de ver tantas coisas arrepiantes lá, resolveu procurar algo menos perigoso para fazer. Alguém sabe por que ele não veio?

- Alex, agora não! - cortou-o Laura, enquanto Anabel deixava de lado os barulhos de talheres e fixava os olhos na mesa, seguindo o olhar em linha reta até a lareira daquela sala. A lareira estava acesa, mas era normal que estivesse. Anormal era a sala, pelo menos três vezes maior que na hora em que Laura lhe deu o remédio para surdez momentânea, ou na hora em que voltaram do passeio. Ana olhou para o avô, espantada, mas ele já havia percebido. Alex falou com ela, mas ela ouviu a voz dentro de sua cabeça, como se fosse telepatia. E algo que Ana não estranhou, pois já havia acontecido antes, mas ela não lembrava quando:

- Acho que já mencionei, aqui as coisas se adaptam a nossas necessidades, às vezes - disse Alex, dentro de sua mente, como se aquilo fosse comum para ele. Ana voltou a comer sem questionar. Estava convencida de que aquele realmente era um lugar especial, como todos afirmavam. A menina tinha uma certeza a partir dali: na sala poderia estar o lugar perfeito para praticar futebol nos dias de chuva!

O jantar acabou mais rápido do que Ana esperava. Ela achou que todos iriam embora, mas ocorreu exatamente o contrário. Ana queria falar com o jovem Elias e para sua surpresa, parecia que os adultos haviam lido seus pensamentos, pois todos subiram a escada para o andar superior. Alex aproximou-se:

- Querida - disse Alex com a mão sobre a cabeça de Ana. - Temos que resolver algumas coisas neste momento, conversa de adultos. Para não ser uma chatice, peço que fique aqui. Elias vai ficar também. Que tal jogar um pouco de videogame com ele?

- Eu tenho videogame?

- Ora, claro que sim, você tem videogame. Só não sei se ainda está na moda. Estas coisas nunca param de evoluir.

- Mas eu não o conheço...

- Prazer, meu nome é Elias.

O garoto sardento apertou a mão de Ana. Ela o olhou de forma desconfiada, mas sem estranhamento. Meninos vistos de perto sempre eram esquisitos mesmo. Elias tinha uma cabeça grande e sapatos um pouco sujos. Usava uma camisa de algodão com listras vermelhas e verdes, e um casaco por cima. Lembrava ligeiramente o "presidiário-mirim da praia", de uma das historias inventadas por Ana. Ela não queria, mas isso foi a única coisa que veio à cabeça naquele instante.

- Estão apresentados - sorriu Alex. - Posso ir agora. Se quiserem, acabei de colocar caramelos na caixa de vidro, na mesa da cozinha. Mas não comam tudo, pode provocar chifres. Isso não é uma ironia.

Um adulto oferecendo doces para Anabel, sem ser no Natal ou no dia do seu aniversario era realmente algo incrível. Teles não queria que suas garotas consumissem doces em demasiado, pois definitivamente não estava pronta para pagar dentista. Nenhum além dos da visita - de dois em dois anos - que elas faziam. Com os olhos a menina acompanhou o avô subindo a escada, sendo ele a ultima das pessoas a chegar ao andar superior.

O Sagitário De SamechOnde as histórias ganham vida. Descobre agora