37. Interlúdio

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Milton Schmidt e Luz Aguiar tinham atravessado dois estados em pouco mais de trinta dias. Nestes dias cansativos de longas jornadas dormiam na terra pura ou em bancos de postos de gasolina quando não eram enxotados. Gastavam o parco dinheiro que conseguiram reunir no dia da fuga de São Pedro de forma cuidadosa. Geralmente um lanche no almoço e outro no jantar. Por sorte e pelo aspecto repugnante daqueles dois andarilhos, não foram assaltados. Numa ou outra parada, inclusive, conseguiram algumas esmolas. Nesta fuga, um interlúdio às suas aventuras, não tinham ânimo sequer para namorar. Conversavam pouco e caminhavam muito.

Contudo, estes poucos mais de trinta dias, na nação do esquecimento era tempo para caramba e quanto mais permaneciam no anonimato, mais seus nomes desapareciam dos jornais. Das capas dos primeiros dias às notinhas de rodapé da semana seguinte. Depois de um mês ninguém mais sequer lembrava o nome dos dois ou de que tivesse no Brisal dois perigosos terroristas desaparecidos. Fugitivos. Nem mesmo a queda de avião que vitimara o aliado João William estava sendo debatida pela imprensa. Tudo havia desaparecido como se jamais tivesse acontecido. Como, confirmavam lendo os jornais diariamente (Luz dera essa sugestão), e neles, agora só se falava das propostas de reformas do governo. Passeatas contra e a favor tinham seus espaços, assim como as polêmicas leis que vinham sendo aprovadas a toque de caixa pelo Congresso. Até mesmo o ministro careca tinha tomado o lugar do juiz morto. Então, depois daquele primeiro mês transcorrido decidiram abandonar o disfarce de andarilho-mendigo logo que fosse possível.

"Não aguento mais feder desse jeito. Minha pele está com uma crosta." Reclamara Luz.

Foi então que quando chegaram ao último estado da Federação, os dois aproveitaram a madrugada e o banheiro público da estação rodoviária de uma cidade litorânea, tomaram um banho e vestiram-se com a peça de roupa limpa que tinham guardado.

"Eu tenho um plano Milton." Dissera Luz logo após comprar os bilhetes de passagem até a capital Porto Feliz. "O dinheiro vai dar contado, mas em dois dias estamos na fronteira. Depois que chegarmos à Pasárgada procuro meus contatos e estaremos livres".

Poucas horas depois os dois chegavam a Porto Feliz. Ambos tinham certo receio, afinal era um grande risco estarem numa rodoviária vigiada como a de uma grande capital. Todavia os dois estavam bem diferentes das imagens suas que estampavam cartazes em que seus rostos vinham acompanhados da palavra procura-se. Milton mantinha a barba espessa e o cabelo crescera um bom bocado. Luz, por sua vez, e ela que nos perdoe a infâmia do trocadilho, se mostrava cada vez mais sem luz.

Em Porto Feliz compraram uma passagem para a cidade de Liberdade, a fronteira livre com Pasárgada. Luz comentara com Milton que a visitara anos atrás numa excursão da universidade. "De um lado da rua é Brisal, do outro Pasárgada" dizia ela falando do intenso movimento nas duas cidades por causa dos free shops. "Aquele cantinho binacional será nossa salvação Mi." Levaram mais de doze horas para enfim chegarem à cidade fronteiriça. Quando desembarcaram, algo perto do meio-dia, os dois suspiraram como se naquela terra de caudilhos o ar fosse mais leve.

"Enfim, liberdade". Disse ela.

"Luz, paixão, eu não quero ser pessimista, mas ainda não acabou. Estamos sem dinheiro algum, o que nos sobrou? Cem? Duzentos?"

"Nossa, Mi, logo você, um homem rico preocupado com dinheiro. Vamos achar um hotelzinho não muito caro para ficar que te conto o resto do plano."

***

A diária do hotel custava Cento e Vinte Reais e não lhes fizeram exigências de documentos. Era um quarto simples, roupas de cama barata e quadros de Dez Reais como elemento de decoração. Depois de reservado o quarto os dois fizeram compras básicas e então ao voltar ao hotel tomaram banhos merecidos e longos e deixaram para trás barba e cabelos mal cuidados. Renovaram-se.

Revigorados amaram-se.

Amaram-se de novo.

Pediram é claro um lanche. Naquela terra chamavam de "xis" pão com carne no meio. "Até que não é ruim" disse ele.

Depois amaram-se novamente.

***

"Mi, amanhã vamos fazer o seguinte. Você tem aí o bilhete, não tem?"

"Te-tenho. Acho que tenho, nem me lembrava dele. Deixa ver aqui."

"Ah! Conta outra, Mi, pensa que não via você alisando o bolso dessa mochila. Bom, o importa é que ele está aí."

"Está mesmo."

"Então, amanhã vamos à agência da Caixa, foda-se, vamos ser identificados, é claro, mas precisamos de grana."

"Não sei não, paixão, isso pode ser muito arriscado."

"Milton, a agência fica a uma quadra da fronteira, é só atravessar a rua."

"Se você diz."

"Bem, eu digo sim. Não acredito que eles consigam nos achar tão rápido, vamos contar que estejam lentos, muita coisa mudou. De todo modo, veja só, vamos à Caixa, retiramos o prêmio. É grana pra caralho. Certamente teremos de abrir uma conta no mesmo banco, sem problema, é seu direito. No máximo, talvez bloqueiem. Mas no ato vamos levar algo em espécie, Dez, Vinte Mil. Isso será mais do que o suficiente para nos manter até cair a casa da Grande Quadrilha."

"Luz, e como nós vamos derrubar os caras? Lembra-se, nós somos os procurados, nós somos os fugitivos. Não tem..."

"Tsc. Tsc. Milton. Aí você se engana. Você está com o material, acabou. Não tem mais chantagem, não tem mais imprensa. Vamos arrumar um notebook, conexão com internet, e então, pronto. Já pensei em tudo. Vamos subir esse material no youtube, depois, estando segura em Pasárgada é só passar os links para a Imprensa Ninja e para uns jornalistas libertários e companheiros de movimento que conheço que a casa caiu."

"Se você diz, minha paixão."

"Vai dar tudo certo, Mi. É só o gerente não bancar o xarope, e você já viu alguém bancar o chato com alguém dono de Cem Milhões? Vamos deixar quase todo o dinheiro ali, colocamos um pouco em nossas contas, para dificultar, e, pronto. De certa forma sua grana financiará a revolução. Ainda será herói, Milton Schmidt".

"Você é, Luz. Você é a heroína dessa história."

Yellow BananasWhere stories live. Discover now