02. REVELAÇÃO PECULIAR

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- Nós somos peculiares - respondeu, soando um pouco intrigado. - Você não é?

-Ransom Riggs, MPHFPC


- Vamos logo para casa, Mill. - Jason insistiu pela milésima vez, depois de eu ter perguntado o que tinha acontecido. Ele nem cambaleava como antes, nem estava pálido. Por mais que isso fosse despreocupante, ainda estava aterrorizado. Como ele estaria bem depois de ter sido esfaqueado por Brandon?

- Não até que você me diga o que foi aquilo! - esbravejei, atirando minhas emoções contra ele. Eu normalmente fazia isso com as pessoas, mas ficava grandemente arrependido quando minha vítima era Cassie. Era injusto e cruel, mas meu coração não entendia a gravidade daquilo.

- O que quer que eu diga, que nada aconteceu? - rebateu, lançando os braços no ar. Ele aparentava estar melhor - Que está doendo?

- E não está? - seu olhar me reprovou, assim que a pergunta saiu da minha boca - Como você não está machucado? Eu vi quando Brandon acertou a faca em sua carne.

- Está delirando, Millard. Foi só uma ilus-

- Não ouse me tratar como um idiota! - gritei, consumido pela fúria. Procurei ajeitar meus óculos no nariz, mas eles estavam sujos de ovo. Nem consegui enxergar os olhos de Jason, muito menos o que eles expressavam naquele momento. Tudo ficou silencioso por alguns instantes, só ouvi o barulho de uma cigarra - Fale alguma coisa!

- É complicado, garoto. - foi o que pôde dizer, pelo menos, o que pôde sair de sua boca. Jay desistiu de ficar em pé, conseguiu uma melhor posição no chão fétido da rua - Você nunca me entenderia.

- E por que não? Sou seu irmão, Jay. Irmãos servem pra esse tipo de coisa.

- Será que não pode aceitar isso, Millard? - sua voz estava mais branda que o comum. Dei um passo para trás, com medo de ele pular em cima de mim, assim como fez com o irmão de Brad - Droga! Não acha que eu já trago suspeitas demais só por morar longe de nossos pais? De você?

Ele estava me torturando de novo, como fazia quando ele ainda era um jovem encrenqueiro. Jason sabia que eu sentia saudades de suas histórias, de suas supostas aventuras. Que eu daria tudo para ouvi-las todas as noites.

- Dói em mim, Mill! Eu gostaria muito de te ver crescer. De beijar as bochechas de mamãe assim que eu acordasse. De ler um jornal com papai. Acha que não machuca?

- Então por que não volta pra nós? - persisti com a ideia que parecia desmoroná-lo por dentro, tanto quanto a mim - Por que não esquece desse dia ou dessa conversa? Podemos recomeçar tudo! Só preciso que você pense no que é certo.

Ele mantinha a mesma feição de sempre. Às vezes eu tinha vontade de socar sua cara, mas espantava o pensamento só de olhar meu reflexo no espelho. Eu não era tão alto como ele, os poucos músculos que tinha serviam apenas para ajudar meus pais em casa, diferentemente dele.

- Vai continuar com a mesma resposta? Estou farto dela. - Jason fechou os olhos e encostou a cabeça na parede de tijolos que sustentava o peso de seu corpo. Ele deveria estar pensando numa boa justificativa, como se qualquer ação que tomasse pudesse se voltar contra ele. Depois de mórbidos segundos, ele finalmente disse alguma coisa.

- Quero te mostrar algo, mas não aqui.

- Ótimo. - tentei forjar uma postura séria, mas algo me importunava constantemente, como a espetada de uma fina agulha.

- Mas tem que prometer algo. - Jay limitou as palavras, soando ainda mais misterioso - Isso fica apenas entre você e eu. Se contar pra alguém, eu posso me ferrar. E muito.

- C-Claro... - murmurei. A ansiedade só aumentando - Prometo.

- Ótimo!

Jason sugeriu que fôssemos para casa, ele não queria chamar atenção. Eu diria que só por construir esse clima de tensão, já estaria sendo chamativo o suficiente, mas não quis preocupá-lo.

Ao chegarmos, ele cumprimentou nossos pais e alguns parentes que vieram me felicitar e esperou que todos cantassem parabéns para mim. Meus primos e tios não quiseram chegar tão perto por causa do cheiro nauseante de ovo podre. Preferi assim.

Essa foi a primeira vez que eu não fiquei entusiasmado para receber presentes ou visitas. Tudo o que queria era descobrir a verdade sobre Jason George Nullings.

- Vamos sair daqui. - sussurrei para meu irmão - Quer mesmo ouvir tia Violet contar sobre a viagem dela para França? Ou sobre os queijos fedidos que ela trouxe para mamãe?

Jay se contraiu e sorriu levemente, puxando-me para perto. Fomos tão silenciosos quanto duas cobras no deserto. Subimos o lance de escadas, corremos até o quarto e ele trancou a porta.

- Está pronto? - perguntou com uma felicidade incompreensível. Meus olhos já estavam brilhando de curiosidade - Lembre-se de não-

- Não contar para ninguém. Já sei! - disse rapidamente - Ande logo!

Jay estreitou os lábios. Seus olhos percorriam por todo o quarto, como se procurasse por alguma coisa. Ele foi até a bancada que eu costumava empilhar de livros e pegou um dos vários exemplares. Moby Dick. A história de uma batalha impetuosa entre o homem e uma baleia branca. O que ele queria me dizer com isso?

- O que está fazendo? - pedi, segurando o riso - Não vai roubar um dos melhores livros que tenho aqui, vai?

- Por favor, Millard. Se eu quisesse escolher um livro para levar, acha que eu não pegaria O Médico e o Monstro? - rebateu - Agora silêncio. Preciso me concentrar.

Não sabia o que estava planejando, mas obedeci à sua voz. O garoto cerrou os olhos e abaixou a cabeça. Alguns fios negros de seu cabelo caíram em sua testa quando o fez, mas nem fez questão de tirá-los. Ele pôs o livro em ambas as mãos. Após segundos, notei algo bizarro acontecer.

Moby Dick estava atravessando por suas mãos, como se estivesse sido engolido por areia movediça. O livro acabou caindo no chão, meus olhos seguiram seu movimento com medo.

- O q-que foi isso? - falei tão alto que não me admiraria se alguém tivesse me escutado lá do andar de baixo - V-Você... o livro... mas... como?

O sorriso de Jay ainda estava em seu rosto. Ele agiu como um mágico após realizar seu mais esplêndido truque para a plateia. Com o peito estufado, segurou o exemplar nas mãos e bateu nele, provando que era mesmo um livro.

- Esse sou eu, pequeno Millard. - revelou, erguendo-se da cama - Sou capaz de atravessar matérias sólidas, mas só quando me concentro. Acho que deu para notar, né? - coçou timidamente a cabeça, analisando o corte que Brandon ainda pôde fazer perto do olho direito.

- Você é como um fantasma? - falando daquele jeito eu até parecia uma criança que acabou de receber uma arma de brinquedo dos pais. Jay balançou a cabeça afirmativamente.

- Sou um peculiar, Mill.

MIRROR ;; millard n. ( ✓ )Where stories live. Discover now