Contador de Histórias

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Há muitos ciclos 
Galáxia de Andrômeda

Magnus Chrone decidiu morrer.

Seu tetraneto, Cornelius, era o atual senhor do Clã. Um homem mediano, sem habilidades memoráveis e um tanto quanto manipulável. Fora casado com Irene Vega, a fim de consolidar sua aliança na guerra contra os Neo-Andrômedos. Havia apenas um problema. Por algum motivo, Irene não conseguia ficar grávida de Cornelius. A situação tratou de separar ainda mais o casal que nunca esteve realmente junto. Previamente apaixonada por outro homem, Irene engravidou de seu amante, Ronan, o irmão caçula de seu marido. Uma, duas, três vezes. Os três meninos cresceram acreditando serem filhos de Cornelius, como ele mesmo pensava. E o casal de amantes continuava a se ver em segredo.

Os filhos foram estes, respectivamente: Prosper, Hughard e Zane Chrone. Poucos anos após o nascimento do caçula, a guerra chegava ao seu fim. Um período de instabilidade política e econômica se instalara. O tráfego intergalático estava impossível de se controlar, com contrabandistas e piratas a dominar o espaço.

Um destes piratas era um neo-andrômedo conhecido por sua feroz habilidade. Moore, o Encantador de Serpentes, ordenava gigantes répteis espaciais a adentrarem naves inimigas. Lá dentro, as serpentes rapidamente punham ovos e proliferavam-se como uma praga. Em pouco tempo todos os tripulantes estariam mortos. E o Encantador teria mais uma nave para sua temível frota.

Naquela época, os Chrones eram responsáveis por um pequeno planeta na periferia da galáxia. Palomar era conhecido por sua árdua e extensa mineração da pedra palomatita, essencial para o furo-de-tecido responsável por possibilitar a viagem instantânea de grandes distâncias pelo espaço. Por muito tempo, o Encantador teve Palomar em sua mira. Até que um dia conseguiu tomá-lo para si.

Ele adentrou a Casa de Chrone e a virou de ponta-cabeça. Fez dela sua. Todos os dias, o Encantador de Serpentes violentava Irene. Torturava seus filhos. Havia sido o responsável pela cegueira do caçula Zane, a claustrofobia de Hugh, o corpo coberto de cicatrizes do primogênito Prosper. Fazia com que Cornelius assistisse e se degradasse perante a ele. Era a única forma de fazê-lo parar.

A situação chegou ao seu ápice quando Ronan tentou impedir que o Encantador estuprasse sua amada. O caçula dos Chrone acabou morto. Quase que uma eternidade depois, a Guardiã Thorne retornou do planeta desabitado em que sua nave havia caído ao fim da guerra. A Guardiã do Corpo intervira pelos Chrone, recuperando a Casa e o planeta do Clã. O Encantador de Serpentes fugira, impune.

Irene havia sido impedida de abortar a criança. O fruto da violência podre do pirata estava protegido pela religião de Vega, até mesmo acima da integridade e saúde da mulher. Dos gêmeos, um viera natimorto. O sobrevivente, Thomas Moore, crescera como os irmãos, acreditando ser filho de Cornelius. Só que, dessa vez, ele era o único a acreditar. Seus irmãos o maltratavam, depositando nele o ódio que sentiam do pirata. E Irene, apesar de tudo, viu no filho tanto de si mesma e nada do Encantador de Serpentes.

Havia algo de trágico e, ao mesmo tempo, fascinante sobre o menino. Thomas fazia com que todos esquecessem de sua infeliz origem ao simples movimento dos lábios e reverberação da garganta. Era esta a sua habilidade andrômeda, tão diferente da que o pai possuía: ele era um influenciador. Como nunca havia sido visto antes e, acima de tudo, um escritor. Com a inerente capacidade de fazer qualquer um acreditar na veracidade de suas histórias.

Ao ouvi-lo, não havia dúvidas. Se Thomas lhe disser que você enfrentou um Leão de Nemeia e sobreviveu, no seguinte instante a lembrança o consumirá como se sempre estivesse lá.

Você se tornará um herói.

Não demorou a se tornar famoso pela alcunha Bardo de Palomar. E, posteriormente, como o Contador de Histórias. Legiões peregrinavam através da galáxia apenas para ouvi-lo falar.

Tudo mudou, do dia para a noite, quando Cornelius Chrone faleceu. E, em seu leito de morte, confessou-lhe o que todos sabiam mas nunca se atreveram a falar. Thomas entrou em um estado de choque e luto tão profundo, que não proferiu uma única palavra por um ciclo inteiro. Passava o dia em casa, escrevendo silenciosamente. Saía, apenas, para se embebedar na taverna local. Em uma dessas saídas, Moore fora provocado por um bêbado imprudente. O homem atiçava e insistia, exigindo que Thomas o contasse uma história.

Havia apenas um problema. O Contador de Histórias não mais escrevia aventuras com grandes heróis e heroínas. Agora, ele preferia escrever sobre criaturas perversas, estraçalhando e devorando homens como o Encantador de Serpentes, que estavam espalhados por toda Andrômeda. Homens que se tornaram monstros como ele mesmo viria se tornar. Consumido pela fúria, resolveu atender ao pedido do bêbado. E se Thomas lhe disser que você está preso na jaula de um Leão de Nemeia, rodeado pelos cadáveres de todos aqueles que ama, no seguinte instante a certeza desta tragédia o atingirá como se sempre estivesse lá.

Você morrerá.

Perseguido pelo assassinato, ele se viu obrigado a deixar sua mãe e sua casa. Por muito tempo, andava foragido. Conhecera pessoas desprezíveis e cometera atos ainda mais desprezíveis em nome de sua sobrevivência. Tinha um único propósito. Um que o levava para frente. O Contador de Histórias agora pensava sobre a inexistente culpa que sentira ao matar o bêbado. Não pensaria duas vezes, caso fosse preciso fazê-lo novamente.

Thomas controlava sua ira ao misturar-se entre os piratas, buscando pela nave em que seu pai havia se entocado pelos últimos vinte anos. Quando finalmente o encontrou, surpreendeu-se ao perceber que não desejava apenas matá-lo. Por anos, escondeu-se debaixo da asa do pai, atuando como um dedicado subordinado. Secretamente minando toda e qualquer esperança de uma vida proveitosa. E então, apenas quando aquilo perdeu a graça, Thomas fez com que fosse devorado por suas serpentes.

Tornou-se o novo capitão aos olhos do resto da tripulação. Vivera entre piratas há tanto tempo que já não poderia mais evitar de se portar como um. Procurado pela galáxia, não poderia voltar para casa sem por sua mãe em perigo. O novo capitão saqueou, torturou e assassinou. Tomou naves. Dominou planetas. Destruiu galáxias. Havia apenas uma regra a qual seus seguidores, agora inúmeros e variados, deveriam seguir: nenhuma mulher deveria ser machucada. Sob qualquer circunstância.

O ódio de Thomas se dirigia única e exclusivamente aos homens andrômedos, como o pai, como os irmãos, como os políticos corruptos e empresários sociopáticos da galáxia. Obcecados por controle e poder, violentamente, eles tiravam e tiravam. Thomas fazia o exato contrário. Dava-lhes algo.

Entregava-os ao caos. 

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