Faísca

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Um ano antes, 19:46 da noite 
West Bronx, Nova York

Estavam na oficina de bicicletas do pai de Brody Wescott. Já perto de escurecer e Lori havia ido para casa com o dinheiro do último golpe. Ele procurava não pensar muito sobre, enquanto trocava o óleo da picape e o amigo se injetava como de costume. Abaixava o barulho dos pensamentos ao aumentar o som daquela velha canção e a cantava ainda mais alto. Não sabia exatamente de quem havia sido a ideia. Apenas como se iniciara. E por que queria que acabasse. Logo.

Começara com o chaveiro, pai de Lori, largado para morrer na porta de sua própria loja. Brody apareceu antes que fosse tarde. Não era o mais eficiente dos ajudantes, mas praticamente um filho para o Sr. Talbot. E este era um bom homem, pensava Brody. Nada como seu próprio pai, o problema em pessoa. O problema do pai de Lori não era a bebida ou a violência, como o velho Wescott. Era o jogo. A aposta. Devia muito e há muito não pagava. Na língua dos agiotas, o espancamento é o aviso final. E então, sem aviso, vem a morte.

A ideia surgiu em meio ao desespero coletivo. Os três jovens transformaram-se em ladrões tão rapidamente quanto puderam, e era difícil apontar o responsável pelo que foi concebido. Brody se mostrara o mais entusiasmado enquanto Jake fora o mais difícil de convencer. Não demorou para que conseguissem pagar a dívida do pai de Lori. Mas isso não foi o suficiente para fazê-los parar.

Agora, trocando o óleo da picape, Jake se perguntava há quanto tempo deixara de ser sobre Sr. Talbot e começara a ser sobre as drogas. Brody doidão logo atrás dele não ajudava. Balançou a cabeça e aumentou o volume do rádio mais uma vez, prevendo que a música entraria em seu clímax.

You can't start a fire, you can't start a fire without a spark... — cantarolava. Despreocupado e risonho, começou a dançar de leve. Terminara o serviço, ele pensava, não tinha por quê se torturar.

De olhos fechados, Jake se focava na animada batida. Foi quando sentiu que Brody se aproximara, do nada, respirando próximo ao seu ouvido. Pensou que ele estivesse de brincadeira quando o amigo começou a beijar sua nuca. Mas ele não parou, e sem dizer uma palavra o tomou para si. A guitarra e o saxofone se misturavam às mãos animalescas que o prendiam contra a carroceria do carro, antes que pudesse pensar em se afastar.

Assustado, ele sentia o volume na calça de Brody roçar contra si enquanto ele violentamente passava as mãos em seus cabelos pretos e os puxava, respirando pesadamente. Sem reação, Jake sentiu os músculos travarem. Tinha a força e a técnica necessária para libertar-se. Mas não era Brody e o seu queimar, e sim o medo que o prendia.

O amigo fez com que virasse de frente para ele e encarasse a violência com que traíra sua amizade. Mordeu seus lábios, rasgando-os. Arrancou-lhe um beijo quente e explosivo, que o queimara de dentro para fora. Seguravam-lhe as mãos, duras e largas, firmes em sua cintura. Sem ter para onde fugir, ele cedeu ao sentimento de pânico e desemparo que o impedia de lutar ou resistir. Era como com o Doutor York.

Com as próprias mãos agarradas à regata suada do amigo, Jake havia entregado a luta. Foi quando Brody parou. Seu instantâneo olhar de repulsa doía mais que qualquer violência. Brody o empurrou contra o carro, cuspindo no amigo. Os olhos, vermelhos e vidrados, piscavam incessantemente. Os dentes, expostos, como a carne de um animal morto e apodrecido. Em choque, Jake lacrimejava. Sua própria boca sangrando, tremendo. Encolhia-se como uma criança.

— Você me dá nojo — Brody disse entredentes, endurecendo os pulsos e estufando o peito. As sobrancelhas espessas e o cabelo loiro em pé lhe dando uma expressão inumana. Gritava. — Nunca mais quero olhar na sua cara!

Explodiu em fúria, avançando contra o amigo. Socou-lhe o rosto e o estômago. Jake caiu em um baque, batendo a cabeça no para-lama. Chorava, sentindo arder e cortar. E Brody começou a lhe chutar. Sem parar.

Pode ser que tenha durado horas. Jake não saberia dizer. Focara-se na música, fazendo com que se repetisse mentalmente até que estivesse acabado. Expulso aos chutes da casa de seu melhor amigo e deixado à beira da inconsciência na calçada gelada, ele já não chorava mais. A dor pulsante em suas entranhas dificultava a possibilidade de sentir qualquer outra coisa Era alheio, até mesmo, aos pingos de chuva escassos que pareciam chorar, tão exaustos quanto ele.

Respirou fundo e grunhiu, apanhando as forças restantes. Teimava em se levantar. Ergueu-se, cambaleante, para cair uma segunda vez. Os joelhos ardiam como se tivessem sido esfregados nus no cimento. Não entendia por que Brody tinha feito aquilo. Não entendia como se sentia sobre o ocorrido. Frustrado, Jake encostou a testa no chão, prestes a beijá-lo. E repetiu a tentativa. Uma, três, cinco vezes. Até conseguir.

Cada passo, doía. Fraquejava. Mas cada passo era um passo a menos, e este pensamento o levava para frente. Cada passo, suportava. Aguentava. Ele seguia adiante. Cruzava as ruas do Bronx e os transeuntes escondidos debaixo de seus guarda-chuvas o estranhavam. Apenas não o suficiente para oferecerem ajuda. Por todas as coisas loucas que Jake vira em Nova York, ele não os culpara.

Estava certo de que conseguiria. Mais alguns passos e estaria no metrô, a caminho de casa. Tomaria um banho e seria como se nada tivesse acontecido. A ficha ainda não tinha caído. E não teve a oportunidade de cair. Pois logo ali, apenas à alguns metros dele, um homem de meia-idade e sua esposa grávida saiam de uma loja de brinquedos.

Dirigiam-se ao metrô. Ela, radiante e notavelmente mais jovem, levava um recém-comprado macaco de pelúcia em uma pequena sacola debaixo do braço. Ele, de barba bem-feita, roupas caras e óculos quadrados. Era como um pesadelo. Jake olhou para os lados, procurando por Scott. Fechou os olhos, chamando por Robbie. Quem quer que fosse, para lhe dizer era mentira.

Mas quando os abriu, era o Doutor York.

Mas não podia ser, pensava. Era para ele estar morto.

Mas quando os abriu, era o Doutor York.

Mas lhe disseram que ele estava morto, cismava. Era para continuar morto.

O que lhe restava de sanidade e consciência, naquele momento, dissipou-se pelo ar como fumaça. Sem pestanejar, Jake se pôs a segui-los metrô adentro. O passo, agora, mais rápido e firme. O olhar que o lembraria de Brody, caso parasse para se ver no espelho. Só que ele não parou. Continuou, ao seu encalço, até que chegassem nos subúrbios.

Uma pequena e frágil casa cor-de-pêssego que se misturava ao pôr-do-sol manchado daquele início de noite tempestuosa. O casal chegava em casa. Escondido, Jake observava de longe. Tateava os bolsos, sentando-se no chão do beco escuro, sem se incomodar com a presença da chuva. Permitindo-se sentir a dor. Saboreando-a. Preparava a droga com o apetite de um náufrago. Deixou que corresse por suas veias, subindo e lhe arrepiando o pescoço. Libertando a carcaça. Preenchendo a essência.

O casal saía de casa.



Despertou com o cheiro forte de gasolina que de suas mãos exalava. Um berço azul desmoronava a sua frente.

Era um menino, pensava.

Despertou tossindo fumaça. A casa cor-de-pêssego, envolta em chamas, desmanchava-se a sua frente.

Era como se fosse feita de plástico, pensava.

A chuva havia parado. O céu noturno, em um absoluto tom negro e opaco, sofria com os choques de luz repentinos de uma tempestade de raios. Inabalável, Jake se sentou de pernas cruzadas no gramado, atento às sirenes da polícia que se aproximavam.

You can't start a fire, you can't start a fire without a spark... — cantarolava. 

Portões da MorteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora