Capítulo 10

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Em julho de 1990, enquanto eu passava três semanas nos Estados Unidos e no Canadá, meus pais começaram a brigar mais do que de costume. Uma noite, minha mãe simplesmente se retirou do salão e subiu para o terraço. Pouco depois, lá estava o Puts na porta de vidro, quase que implorando para que ela voltasse a falar com o meu pai. Ela desceu.

– Eu estou aqui só pelo cachorro, que foi me buscar lá em cima, e para tentar salvar o nosso casamento.

Mas, mesmo com toda a índole conciliatória do Puts, o casamento não tinha mais salvação. Os decibéis aumentaram muito lá em casa e foram piorando ao longo dos meses. Em 91, a casa virou um verdadeiro inferno e minha vida também. Foi um dos anos mais difíceis para mim, a vida inteira dando errado, desinteressado da faculdade, sem amor, enfim... Nada dava certo. Era comum eu chegar da faculdade com o código civil e o penal na mão e jogar os dois contra a cortina do meu quarto (era uma cortina forte que aguentava firme). Nessas horas, o Puts era a minha única fonte de alegria, o único ser que estava sempre ao meu lado, abanando o rabo.

A partir de junho daquele ano, minha mãe passou a dormir no escritório lá de casa, num colchão que ela guardava debaixo da cama do casal. Toda noite, ela carregava o colchão para o escritório e acordava cedo para recoloca-lo debaixo da cama, para "ninguém perceber" que ela estava se separando. Mas até o cachorro percebia.

Um belo dia, quando eu não estava em casa, ela e o Puts começaram uma "discussão" na sala do primeiro andar. Ela começou a dar ordens para ele, e ele não aceitou. Começou a rosnar e a enfrentá-la ferozmente.

Você está se separando! Não vai morar mais aqui! Que negócio é esse de querer mandar em mim, na casa que eu divido com o meu pai e o meu irmão!?!

– EU VOU TE TRANCAR NO BANHEIRO, SEU PORCARIA! VOCÊ VAI VER SÓ! – berrava a minha mãe.

De jeito nenhum! Eu não vou ser trancado no banheiro como se fosse um cachorro! Experimenta por as mãos em mim para ver o que acontece! Experimenta!

Os dois foram salvos pelo novo caseiro, Cícero, que adorava o Puts e interviu:

– Calma, Dona Myrian. A senhora tá muito nervosa. Eu vou levar o cachorro para dar uma volta. Vem, Puts, vem.

O cachorro foi dar uma volta e a "crise" foi resolvida. Como se vê, uma pessoa tentar manter as aparências de que não está se separando não adianta nada. Tempos depois, minha mãe comentaria:

– Até o cachorro percebia que eu estava por baixo e não mandava mais na casa...

Principalmente ele percebia.

Meus pais nunca se separaram no papel, e ainda tiveram que manter as aparências uma última vez. Como "pacote de saída", minha mãe comprou um apartamento de três quartos na rua Alberto de Campos, em Ipanema, quase na Lagoa. Para os vendedores do apartamento, os dois disseram que era para fazer um ateliê de pintura (minha mãe realmente era pintora). E os vendedores propuseram abrir uma champagne em homenagem ao "feliz casal". Meu pai ficou muito constrangido, mas segurou a onda.

Com a saída da minha mãe, tive que fazer o papel de "dono da casa", o que não me agradava nem um pouco. Mas depois de um mês eu já tinha organizado com o Cícero e com a Nice (mulher dele) o que eles podiam comprar toda semana, sem ter que me consultar. Meu pai ficou espantadíssimo, porque eu não gastava nem um terço do que a minha mãe gastava.

Além do apartamento em Ipanema, minha mãe ficou incumbida da administração da casa de Araruama. E foi lá que ela teve uma ideia verdadeiramente luminosa. Em vez de morar no Rio e passar o fim de semana em Araruama, por que não fazer o contrário? Pelo seu plano, ela passaria a semana na casa de Araruama, que tinha uma área imensa, horta, pomar e uma lagoa linda, e só viria ao Rio de vez em quando. Na época, essa viagem era feita, de carro, em pouco menos de duas horas. Era uma ideia.

O que ela não me disse era que o Puts Cachorro fazia parte da experiência. Nem a ele.

Um belo dia, uma quarta-feira, ela passou lá em casa e disse que passaria uns três dias com o cachorro em Araruama. Não disse para quê.

De noite, já em Araruama, dispensou o casal de caseiros que moravam numa casa a cerca de quinze metros da casa principal e ficou vendo televisão. Sozinha – ela e o Puts. Depois subiu com o cachorro para dormir. Ela na cama, ele embaixo.

Mas, para que o teste fosse mesmo completo, Deus achou por bem mandar uma tempestade completa com raios e trovoadas assustadoras.

Quando os primeiros relâmpagos começaram a ecoar, minha mãe, 53 anos, começou a chorar e a bater o queixo debaixo das cobertas.

Mais alguns raios e, de repente, Puts Cachorro também se materializou em cima da cama, ao lado dela, chorando e batendo o queixo. Ela olhou para ele.

– Você está aqui, seu porretinha?

Que ideia burra, não, minha mãe?

– É incrível como o cachorro mimetiza aquilo que o dono faz... – minha mãe comentaria depois. – A gente passa a nossa insegurança para eles.

Naquela noite, não havia mais o que fazer. Ficaram lá, debaixo das cobertas, tremendo e batendo queixo os dois medrosos da família.

Gostaria de deixar registrado, nesse relato que o meu irmão está fazendo, que eu jamais perdi o controle da situação. Eu só queria deixar claro o meu total repúdio à ideia de morar em Araruama, longe do meu irmão que precisava dos meus conselhos. E, como eu não sabia falar, o jeito foi fazer essa pequena encenação, para mostrar o quanto aquela ideia era imbecil. Mas medo, eu não senti. Nunca.

No dia seguinte, já estavam os dois no Rio. A ideia de morar em Araruama foi devidamente arquivada.

PUTS! 17 anos e meio ao lado de um engraçadíssimo cachorro-pessoaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora