Capítulo 5

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Desde que chegou lá em casa, eu nunca quis ensinar o Puts a fazer coisas de cachorro.

Ele tinha bolinha para brincar, tinha osso, mas eu achava meio cansativo o comportamento de alguns cachorros de amigos meus, que queriam que o osso fosse atirado para eles buscarem mais de uma dúzia de vezes.

Eu confiava que o Puts era capaz de fazer mais do que isso.

Claro que eu brincava de atirar o osso com ele, mas, principalmente, falava com ele como se fosse uma pessoa normal. E ele entendia. Para mim, ele era um cachorro-pessoa. E ele concordava com isso.

Minha mãe é pessoa, meu pai é pessoa, meu irmão é pessoa. Consequentemente, eu também sou pessoa. Eu não posso ser menos que o meu irmão!

Décadas mais tarde, Stanley Coren, professor da Universidade de British Columbia, do Canadá, disse que os cachorros têm uma inteligência equivalente a uma criança de dois anos e meio. Outro professor sentenciou: "Cachorros são pessoas!"

Os poodles ficam em segundo lugar no ranking de inteligência canina, só atrás dos Collies. Mas Collies costumam ser meio parados.

Para mim, Puts Cachorro tinha, no mínimo, a inteligência de uma criança de cinco anos. Com o tempo, foi entendendo tudo o que se falava na casa. E era muito sensitivo. Não sei como, mas ele simplesmente sabia tudo o que acontecia. Era como se tivesse uma conexão direta com a Alma do Mundo.

No nível mais terreno, o mais impressionante era o fato dele fazer estoques. Além de ser um esganado por comida, que pedia sem parar como se tivesse sido um flagelado em outras vidas, quando conseguia um pedaço de pão, volta e meia o escondia debaixo do tapete ou discretamente ao lado do pé de uma mesa, antes de pedir mais.

Depois, quando não havia ninguém comendo na sala, ia buscar tranquilamente seus pãezinhos, que comia quando bem lhe aprouvesse.

Segunda-feira era dia de faxina geral em casa e os pães desapareciam, sugados pelo aspirador de pó. Puts ficava fora de si quando não encontrava os pães no lugar onde ele os havia estocado, mas não se fazia de rogado. Pedia mais pães para a semana.

E ele realmente ganhou um aliado no professor Waldemar. Em algum momento de 1986 ou 87, minha mãe começou a organizar encontros de senhoras da idade dela com um ex-engenheiro da Light que perdeu muito dinheiro e passou a se dedicar à filosofia e ganhar a vida dando aulas sobre "o sentido da vida" a senhoras que até então só haviam cuidado de filho. Pessoalmente, nunca assisti a esses encontros, mas ele trazia textos de Nietzsche e Schopenhauer para debater. Que quase ninguém lia. Em compensação, Puts Cachorro era o mais assíduo participante. Horas antes da reunião, ele se plantava na sala e mordia qualquer um que ousasse tentar tirá-lo de lá. Minha mãe ficava toda encabulada.

– O senhor me desculpe, professor Waldemar, o senhor dá esses textos de Schopenhauer para a gente e o cachorro se planta na sala para assistir à sua aula e não tem como tirar.

– Deixa, Myrian. Da mesma maneira como nós estamos evoluindo, ele está evoluindo também. Vai que ele "pesca" alguma coisa.

– Mas, professor...

– Deixa ele aqui. Ele não tá fazendo nada de mal.

E, a partir daí, ele passou a "assistir" às aulas debaixo da cadeira do professor. Só ficava elétrico na hora que o lanche era servido. Não havia como a filosofia ser mais importante do que o estômago.

A propósito, ele só comia comida de gente. Devido a uma má experiência com a ração da cadela que o antecedeu, Puts só comia arroz com carne. No começo, a casa também oferecia a opção papinha de frango. Mas havia horas em que ele queria comer carne quando havia frango e frango quando o menu era carne. Para acabar com essa frescura, passou a comer só carne com arroz. Depois, passamos a acrescentar cenoura ralada e papinha Nestlé. Puts Cachorro passou anos e anos comendo só isso – mais o que filava na mesa.

Ração tem as suas vantagens. Hoje, com certeza são melhores do que naquele tempo. Mas, aqui entre nós, se ração fosse bom, nós mesmos comeríamos.

Com sua simpatia, Puts Cachorro conquistava a todos – até quem não gostava de cachorro.

Havia apenas uma exceção: o Chico.

Vários anos antes, um mico havia sido capturado dentro da casa de Araruama e foi logo colocado numa gaiola onde criávamos coelhos. Eu não gostava daquele confinamento, mas meu pai gostava do miquinho e logo construiu uma gaiola enorme para ele, com balanço e lugar coberto para dormir, além de uma passagem incrementada para a comida e um chão com vários painéis de aço para retirar as fezes. E o mico ficou lá, brincando, por muitos anos. Foi batizado de Chico. Era uma verdadeira atração, principalmente entre as crianças, que iam lá em casa só para vê-lo.

Até que o Puts chegou e viu logo a situação. O mico era muito simpático, mas estava preso.

E o Puts latia para ele e saía correndo. Depois se aproximava de novo, latia e saía correndo. A mensagem não podia ser mais clara: Eu sou livre, você não é.

Já havíamos tido outros dois cachorros na casa de Araruama, quando também havia o macaco. Nenhum deles fazia isso com o Chico.

E o Chico detestava o Puts Cachorro.

Com o tempo, além de latir e sair correndo, Puts começou a ser mais ousado. Começou a passar embaixo da gaiola do Chico, abanando alegremente o rabo. E o Chico, fumegando de raiva, esticava a mãozinha para pegá-lo pelas orelhas ou pelo rabo. Quando eu estava em Araruama, sempre ficava por perto nessas horas para intervir, caso fosse necessário. Se o Chico conseguisse pegá-lo pelas orelhas, poderia fazer um estrago. Mas, em anos de tentativas, nunca conseguiu.

Chico fugiu duas vezes para dentro de casa, quando não estávamos lá – nem o cachorro. Acabou recapturado. Na terceira, fugiu para o meio do mato e nunca mais voltou.

Na peça que montamos aquele ano na escola, 1M Contra-Ataca, eu fazia a abertura junto com o Romério. Ele fazia o papel do diretor da escola, lendo o discurso de boas-vindas, e eu, o papel do administrador, um ex-sargento do exército baiano que disciplinava os alunos. Na vida real, esse administrador volta e meia vestia uma calça salmão, camisa aberta no peito e colares.

Semanas antes da peça, com o figurino já acertado, me caracterizei para o Puts para observar sua reação. Assustadíssimo, ele se meteu debaixo do armário da cozinha (onde cabia um cachorro pequeno) e ficou todo espantado, me olhando lá de baixo, só com o focinho à mostra.

Não pode ser o meu irmão. Não pode ser. Deve ser um ET.

Mas isso ele ainda não tinha como entender. Ele não devia me achar muito bom da bola...


PUTS! 17 anos e meio ao lado de um engraçadíssimo cachorro-pessoaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora