Em toda essa epopeia, Puts Cachorro não saiu do meu colo e, mesmo depois da saída dos bombeiros, ainda fiquei com ele mais duas horas no colo, até que seu pequeno coração se acalmasse. Acho que foi a partir daí que ele passou a ser meu chapa de verdade. Viu quem mais se importava com ele.

O que aconteceu com Gracilene poderia ter acontecido comigo, se eu tivesse menos estrutura. Minha mãe simplesmente não sabia quando parar de cobrar ou espezinhar as pessoas. A caseira tinha 19 anos, a mesma idade que eu.

Depois disso, ela parou de me importunar um pouco com seu mar de pessimismo até que, no início de 1989, o irmão dela, alcoolizado, sofreu um acidente de carro e ficou cego de um olho. Imediatamente, o melhor da minha mãe (uma enfermeira nata, mesmo sem qualquer treinamento formal) veio à tona e ela passou a cuidar dele com o maior carinho.

O Puts também. Em todos os curativos que a minha mãe fez no irmão (e eram feios, nos olhos), ele ficava na porta, como um guardião, sem deixar ninguém passar, protegendo o ambiente.

A essa altura, eu já havia escrito um segundo curta-metragem (agora um documentário), a ser feito no Rio e em São Paulo, bem mais barato. Já tinha uma produtora interessada em coproduzir comigo. Com um pouco de sorte, daria para fazer tudo por US$ 7.500.

E eu tinha US$ 9.000. Nos dois anos anteriores, meu pai fez uma das melhores coisas na sua vida e me iniciou nos cassinos de Punta del Este, que ele frequentava desde 1980. E, como era cliente assíduo, me deixaram entrar e jogar, mesmo sendo menor de 21. Comecei a jogar com alguma ajuda dele e, em quatro temporadas, já havia amealhado esse capital.

Em 1989, o Brasil estava desanimado e perdido, esperando a eleição presidencial do fim do ano, a primeira depois do fim do governo militar. Decidi usar o dinheiro para fazer uma viagem à Europa e talvez esticar um pouco. Antes do acordo de Schengen, dava para ficar três meses em cada país.

Meu pai achou que eu devia ficar muito mais tempo.

– Fica uns cinco anos. Espera o Brasil ter um novo Juscelino.

Isso iria depender do que eu conseguisse escrever. E escrever era algo que demorava. Pelo menos um ano para escrever um filme realmente bom. Mas, principalmente, eu precisava sair do ambiente de doença, de desamor e de tristeza que eu sentia em casa. Quanto mais longe, melhor. Em princípio, fui para ficar seis meses, os dois primeiros viajando.

Nesses dois meses, corri 12 países. Em Londres, tive uma entrevista muito interessante com Colin Vaines, diretor de criação do lendário David Putnam, produtor de filmes como Carruagens de Fogo, Os Gritos do Silêncio e O Expresso da Meia-Noite. Semanas depois, vi com os meus próprios olhos o que era um país comunista.

A Hungria se abria ao mundo e era fácil visitar Budapeste. Só fiquei três dias lá, mas o sistema me pareceu falido e insuportável. Havia filas para tudo e até uma simples operação de câmbio era uma confusão para se fazer. Por isso, nunca caí no conto do vigário dos que diziam que os regimes socialistas eram uma maravilha. Não eram. Tanto é que todos desabaram logo depois, naquele mesmo ano de 1989, e nenhum país comunista tem saudade daqueles tempos.

Em Roma, estive com o produtor de cinema Tonino Cervi, casado com uma amiga do meu pai. Ela me chamou para um queijos e vinhos na casa dele e me apresentei:

– Eu sou o Gabriel, roteirista.

Ele deu de ombros.

– Roteirista, tem molto por aí...

Pelo jeito, eu não ia conseguir nada dele.

No domingo, um dia antes da visita, era final da Copa América de 1989 no Maracanã. Enquanto eu assistia ao jogo pela RAI, telefonei ao Rio e perguntei como estava o cachorro. Meu pai respondeu:

– Está recolhido.

RECOLHIDO, O PUTS?? Nenhum adjetivo combinava menos com aquele cachorro, que vivia pulando, latindo e abanando o rabo para todos. Uma pilha de alegria.

Depois do fracasso da visita a Tonino Cervi, perguntei de novo.

– E o nosso cão?

– Nosso cão está num momento de introspecção.

O Puts estava triste, isso sim, talvez até deprimido. Estava sentindo a minha falta. Mesmo sob os protestos do meu pai, decidi interromper a viagem. Em dois meses, eu não havia conseguido escrever nem uma linha e pelo menos poderia salvar a vida do meu cachorro. O Puts era mais importante do que a viagem.

– Esse produtor casado com a Neusa pode te ajudar!

– Ele não vai ajudar. Pode acreditar.

Desliguei o telefone e fui direto até a agência da Varig, que ficava na Via Veneto, a umas nove quadras do meu hotel. Numa época em que não havia internet e os preços das passagens aéreas eram fixos e tabelados, os passageiros tinham que confirmar as viagens internacionais com pelo menos dois dias de antecedência, ou perderiam a reserva. Cheguei na Varig.

– Eu tenho essa passagem Zurique-Rio, mas tenho que voltar para o Rio, daqui de Roma, depois de amanhã. É urgente. Um problema de doença na família.

– Não sei se vai dar.

– Todos os passageiros já confirmaram?

– Não.

– Então, o primeiro que não confirmar, o lugar é meu. É só um lugar.

Normalmente, não há problemas em conseguir um único lugar e, no dia seguinte, já estava tudo resolvido.

Devido a uma pane no avião, o voo que deveria sair na quinta à noite só saiu de Fiumicino à uma da tarde de sexta e cheguei em casa às sete da noite. No meu quarto, me esperava um belíssimo pratão de brigadeiros feitos pela minha mãe. Mas nada se comparou à reação do Puts Cachorro.

Ele estava na metade da escada quando me viu e seu rosto inteiro se iluminou.

O meu irmão!! O meu irmão voltou!!!

Veio correndo a toda velocidade. E me cobriu de lambidas, como se aquele fosse o dia mais feliz da vida dele. Dois meses antes, mesmo sendo bem otimista, eu havia embarcado para a Espanha com pensamentos um tanto mórbidos, achando que se eu morresse ninguém sentiria a minha falta – um pensamento que saiu da minha cabeça assim que desci em Palma de Mallorca, um dos lugares mais bonitos que já conheci.

Agora eu tinha a resposta de quem sentiria a minha falta. Puts Cachorro quase morreu de tristeza enquanto estive fora e, até aquela viagem, eu achava que ele gostava mais da minha mãe do que de mim. Talvez nem ele soubesse o quanto gostava de mim, até eu ficar dois meses fora.

Nas duas semanas seguintes à minha volta, Puts andava atrás de mim a casa inteira. Se eu ia ao banheiro, ele ficava na porta. Quando eu saía, ele abanava o rabo. Era o mesmo tipo de reação que eu tive quando, com meu um ano e meio de idade, minha mãe foi passar dois meses na Europa. Cada vez que ela se afastava, eu segurava a mão dela:

– Vai embo'a não.

Agora era o Puts que abanava o rabo e pedia para eu não ir embora. A partir dali, ficamos inseparáveis.

PUTS! 17 anos e meio ao lado de um engraçadíssimo cachorro-pessoaWhere stories live. Discover now