– Por aqui, Puts, por aqui – falava, indicando a escada.
E ele descia a escada despencado, a toda velocidade.
Nunca se atreveu a pular.
Mas minha mãe, vendo a mesma cena nessa época, dizia:
– Se ele pulasse, resolveria todos os nossos problemas.
E de outra feita:
– Um pouquinho de estricnina na comida dele e todos os nossos problemas estariam resolvidos.
Eu ficava horrorizado com esse tipo de comentário. Minha mãe estava passando por uma fase de pessimismo atroz na vida, mas o que o cachorro (que a adorava) tinha a ver com isso?
De minha parte, no que dependesse de mim, nada jamais aconteceria ao Puts e nada nunca aconteceu. Minha mãe era uma pessoa perfeccionista e exasperante, como um crítico de cinema que nunca fez um filme na vida mas exigia que o filme dos outros fosse perfeito. Ela me levava ao limite da minha paciência, mas, também comigo, nada aconteceu. Já com a caseira lá de casa...
A primeira indicação de que alguma coisa estava errada aconteceu num comentário casual que a caseira Gracilene, de apenas 19 anos, fez para a minha mãe.
– Às vezes eu vejo a senhora dormir na sua cama grande... Eu gosto tanto...
Oi?
Mais alguns dias e eu falava no telefone (a casa só tinha um, fixo), e ela me interrompeu.
– Seu Gabriel, eu queria dizer que eu roubei um lápis e uma borracha do seu quarto, mas já devolvi. Tão lá em cima da sua mesa.
– Ah, tá bom. Não tem problema – falei, sem dar mais atenção ao "roubo", e voltei à conversa no telefone.
À noite, chovia um pouco e Gracilene começou a choramingar. Não era alto, mas dava para ouvir da janela do salão do terceiro andar. Avisei ao meu pai.
– Acho que a Gracilene tá chorando.
– Tá chorando? Então fecha a janela. Fecha lá!
Coloquei a cabeça para fora, vi que ela estava chorando mesmo e fechei a janela. Depois, tive uma ideia luminosa e fui tirar o cachorro da cozinha.
– Puts, vem aqui. Vem com o seu irmão...
Ele não ofereceu resistência. Minha mãe comentou:
– É bom tirar ele mesmo, porque a coisa aqui tá ficando feia.
Com o Puts no colo, olhei duro para ela, como quem diz "e você devia sair também".
Mas não saiu. Minha mãe tinha o péssimo hábito de, ao ser atacada, fazer-se de estátua e fingir que não era com ela, que nada lhe atingia.
A choradeira correu por mais uns dez minutos, até que vieram dois gritos agudos.
– DONA MÍÍÍÍRIA!!! AAAAAIIIII!!!
Meu pai e eu (com o Puts no colo) corremos escada abaixo para ver o que era. Entre a cozinha e a área de serviço (onde eu vira Gracilene chorando), havia uma janela e Gracilene havia tentado pular com uma faca na mão, para atacar a minha mãe. Mas apoiou o pé descalço nos fundos de uma geladeira velha e levou um choque violento. O marido, que também trabalhava lá em casa, como caseiro, a agarrou pelas pernas e gritou:
– FOGE, DONA MYRIAN, FOGE!
O que deu tempo para a minha mãe sair pela cozinha e passar a tranca na porta.
Com a minha mãe salva, meu pai começou a ameaçar a caseira, do outro lado da porta, com um processo, ou com prisão. Minha mãe ligou para uma vizinha, que veio até em casa e implorou que Gracilene se acalmasse e "se entregasse a Jesus Cristo, Salvador". Mas a única coisa que adiantou mesmo foi a ambulância do corpo de bombeiros, que chegou e encurralou Gracilene contra uma parede. Gracilene, uma paraibana que deve ter trabalhado lá em casa uns seis meses, saiu de lá numa camisa força e o marido foi num camburão, dar seu depoimento à polícia. Nenhum dos dois voltaria a trabalhar lá em casa.
YOU ARE READING
PUTS! 17 anos e meio ao lado de um engraçadíssimo cachorro-pessoa
Non-FictionUma história real: Quando Puts Cachorro foi lá para casa, eu tinha 14 anos, era um adolescente tímido e esmirrado, que só sabia escrever. Quando ele morreu, depois de 17 anos e meio muito bem vividos, eu era um homem feito, atlético e encaminhado na...
Capítulo 8
Start from the beginning