Capítulo Vinte e Sete

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Dizendo isso, saiu de meu campo de visão, indo para não sei onde, pois não conseguia me mexer para ver nada ou me importar com qualquer coisa. Sentia que o tapa que ele dera em meu ombro, no que provavelmente deveria ter sido uma maneira reconfortante, afundara meus pés no mármore branco do mosaico do chão. Talvez meu cérebro ainda estivesse absorvendo o que tinha acontecido, ou talvez apenas tivesse se fechado em si mesmo para impedir que entendesse as consequências do que se passou.

A respiração estava presa em minha garganta e as imagens ao meu redor sumiram em borrões coloridos enquanto minha cabeça tinha pequenas e novas explosões doloridas a cada vez que uma nova realização me atingia com a força de um tanque.

Merthier.

Os produtos de beleza Merthier.

Como eu nunca tinha feito aquela ligação antes? Não precisava ser Dylan Chase para juntar os fatos que agora pareciam tão claros. Era como puxar um fio que desenrolava tudo.

Por um segundo o passado me reclamou e de repente estava de volta no quarto de mamãe, com oito anos de idade, sentado na cama, esperando que ela terminasse de pentear os bonitos cabelos castanhos. Eles brilhavam, fios claros dançando sob a luz do sol que entrava por entre as gretas que a cortina branca deixava passar. No canto esquerdo sobre o vidro da penteadeira, o frasco vermelho escuro com o nome Merthier escrito em caligrafia fina e elegante.

Tão rápida quanto aquela memória apareceu, encontrei-me de volta ao presente e analisando as pequenas coisas do dia-a-dia que deveria ter percebido também. O prédio onde morávamos era muito caro, o bairro era nobre e nem uma única vez ouvi Ravenna reclamar sobre os custos de manutenção. Não entendia de roupas de mulher, mas as dela eram obviamente de boa qualidade, agora podia ver que por certo eram as melhores que o dinheiro poderia comprar. Sim, ela era uma excelente profissional e clientes nunca lhe faltavam, porém, os mimos que tinha não poderiam ser custeados apenas por seu salário. Ainda havia sua boa educação. Sempre impecável à mesa e podia jurar que já a tinha ouvido resmungar em italiano, o que provavelmente vinha de sua fluência também nessa língua, tornando-a poliglota.

Acho que podia me considerar o exemplo maior de cego seletivo. Todas as evidências estavam bem debaixo de meu nariz e eu escolhi ignorar. Não liguei os pontos e me deixei enganar, não por ela, mas por minha fantasia idiota de normalidade. Gostava da ideia de sair da KI e daquele mundo de etiquetas insuportáveis e hipócritas para chegar em casa e encontrar minha namorada incrível e tão... normal. Exceto que ela não era normal.

Ravenna Reid era a herdeira de um verdadeiro império. E eu não sabia se a conhecia mais.

...

Talvez se não tivesse tão perdido dentro de minha própria cabeça, teria percebido o peso do silêncio que nos acompanhou para fora do baile e durante toda a viagem de volta. Ao invés disso, entretanto, continuava apenas dissecando meus próprios pensamentos de novo e de novo, em uma ação que se assemelhava a um obsessivo sádico que cutucava o próprio machucado para ver se realmente estava doendo, mesmo quando a conclusão era óbvia.

Era óbvio que um machucado causava dor, era óbvio que Ravenna Reid não era quem eu pensava.

Minha cabeça doía tanto que sentia como se pequenas agulhas se fincassem atrás de meus olhos. Não sentia minhas mãos graças a força com que apertava o volante e não deveria estar dirigindo com a atenção tão mínima na estrada. Não fosse o treinamento de disciplina militar que te fazia continuar quando já tinha ultrapassado seus limites, não teria conseguido guiar o carro. Como um autômato, estacionei em minha vaga e da mesma maneira zumbi cheguei até nosso andar. Foi só quando senti sua mão em meu ombro e sua voz suave chamando meu nome que voltei a realidade.

BlackbirdWhere stories live. Discover now