1 - Monstros da floresta

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Gritos de mulher preenchem a floresta e o ataque é súbito, vindo de cima, de uma das colinas.

A floresta está coberta por uma fina camada de gelo, e mesmo assim não sinto a temperatura.

O lobo a abocanha com voracidade. Estranho ao ver tamanha raiva, isso não é uma atitude apenas predatória. Tem algo que me diz que aquela violência é muito mais do que uma refeição. A mulher já está morta, foi fatal. Quando a fera abocanhou seu pescoço quebrando-o de maneira que o estalo deu para ressoar bem longe.

Ele não a atacava para alimentar-se, não fez questão de engolir. Aparentava nojo e ao mesmo tempo ódio um tipo de reação enegrecida.

Aquilo era uma sensação ruim. O clima está pesado, o ar estava rarefeito e nada daquilo aparentava ser bom. Normalmente eu não sinto nada além de frio. Um frio que já acostumei com ele, porque não sou nada além de um fantasma que vaga como um fiel escudeiro.

Quando Rudah nasceu eu demorei alguns dias para compreender quem eu era e onde estava, mesmo assim, até hoje não compreendo o significado de minha existência.

Muitos achavam que ele estava ficando louco ao falar comigo. O segredo de família sempre foi bem guardado para que não fôssemos encontrados. Apesar de tudo, a família de Rudah ao menos aparentava aceitar-nos do jeito que somos. Sempre tive a impressão de que sabiam mais do que nos falavam.

Acontece que Rudah é amaldiçoado e eu sou seu espectro. Ninguém além dele é capaz de me ver, mas eu posso vagar livremente em diversos locais até mesmo longe de Rudah.

Na infância brincávamos de nos afastar e no momento em que ele pensava em mim, sem que eu precisasse fazer nada já estava próximo a ele. Como se teletrasportado em um piscar de olhos.

Hoje pela manhã viemos correr. A maldição que família de Rudah carrega o fez virar um lobo de dois metros. E quando ele está transformado sua aparência humana aparece ao meu lado em forma de espectro. É como se fôssemos da mesma espécie. Mas no fundo somos um só apesar de bastante diferentes.

Rudah já me desenhou, para que eu soubesse como são as minhas feições. Sua mãe gostou tanto da arte que emoldurou em prata e colocou em uma parede da sala. Espectros não possuem reflexos nunca pude me ver pessoalmente. É um pouco vazio ter uma vida limitada ao que o outro pode fazer. Às vezes me pego pensando que sou nada menos do que um parasita.

Honestamente gosto quando ele se transforma e vejo sua forma humana no mesmo tom esbranquiçado, e, um pouco azulado que eu. Não me sinto tão só quando ele está assim. Meio lobo meio espectro.

Rudah e seu pai não se dão muito bem, ele espera muito de nós. Tanto, que não estamos dispostos a ser. Na última discursão que tivemos com o pai, decidimos sair para sempre de casa.

Foi uma medida um tanto drástica, tomada pela raiva, conversamos depois de um mês sobre isso e resolvemos que voltaríamos um dia. Esse dia ainda está distante. Obviamente sentimos muita falta de nossa família, só que o mundo é muito grande para viver enraizado em um lugar. Não encontramos ainda um motivo forte o suficiente que nos faça desistir de conhecer pra reviver experiências já vividas como uma vida de cotidiano regular.

Deixamos o pequeno lugarejo da família de Rudah - nossa família -, para conhecer o mundo.

Marion é muito mais do que uma simples vila. É simplesmente imenso cheio de mistérios. Alguns indecifráveis, sabemos. O que não os faz menos interessantes. Observar ou se aproximar do indecifrável é um feito muito grande. É, além de tudo, um desafio proposto indiretamente. Sem regras, sem conceitos, livres para especulações.

O Espectro (Segredos de Marion #1) ✔Onde as histórias ganham vida. Descobre agora