14 - Sob o céu das senhoras de estado

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Não foi com muita dificuldade que Rudah contou a história toda. Sobre a lenda de Valkiria, e ao mencionar o nome Misha reconheceu como sendo sua avó. Depois contou quando nasceu e como eu comecei a existir.

Disse que sobre a minha existência e a menina Misha parece acreditar. Não sei se pensa que ele é louco e gosta apenas da companhia dela. Mas acho que os testes que ela fez pedido para que ele adivinhasse os números que tinha levantados nos dedos das mãos escondidos pelas suas costas foi o suficiente para dar conta que eu estava realmente entregando todos os números certos.

- Então Vlad me espiona para você? - ela pergunta.

- Prefiro o termo "acompanho para garantir a proteção dela" - digo e Rudah sorri.

- Ele disse que prefere o termo acompanha para garantir sua proteção - conta para Misha.

- Gostaria de vê-lo. - Ela fala. - E agradecer pela companhia, pela invasão de privacidade, por ser fofoqueiro e contar para você tudo que eu ando fazendo e com quem tenho falado. - ela sorri.

- Diga a ela que eu falei que estou a disposição para o que ela precisar. - falo, e Rudah repete.

Eles acabam mudando o assunto e terminando de comer a sopa o pão e as frutas.

Rudah não chegou a contar que a mãe e a tia de Misha apareceram para mim depois de mortas. Também não disse que elas queriam que ela pegasse o grimório da família em sua casa. Ele pensa que é muito para a garota absorver e que amanhã seria o melhor dia para entrar nesse assunto. Afinal, ela já tinha chorado suficiente hoje pela saudade da família no dia de hoje.

Disse-me mentalmente que queria confortá-la hoje para não fazê-la chorar mais.

Misha abre a boca bocejando de sono, encosta-se na cama improvisada de Rudah cheio de panos no chão e deita.

- Acredita que existe algo além das estrelas? - ela pergunta para Rudah.

- Se Marion possui tantos segredos e tantas coisas que achamos ser inacreditáveis muitas vezes... Por que pensaríamos que não existe nada além das estrelas? Claro que existe.

- Acha que poderíamos chegar lá um dia?

- Acho que as senhoras de estado poderiam se quisessem. Temos tantos mistérios internos, tanta magia e maldição. O que serão as estrelas afinal?

- Elas podem ser apenas um pano de luzes mágicas impostos pelas senhoras de estado para nos entreter e nos fazer admirar.

- Sim, ou podem ser algo além da compreensão. Além da nossa, além de todos.

- Duvido muito que seja além da compreensão delas. Tudo que existe é da compreensão delas. Gostaria de ter um dia tal conhecimento.

- Gostaria mesmo?

- Sim! Conhecimento deve ser uma coisa maravilhosa, deve ser emocionante poder saber de tudo e conhecer tudo. Você acha que eu seria capaz?

- Sem dúvidas! A senhorita é capaz de fazer o que quiser. Contudo, não acredito que as senhoras de estado sejam felizes. Elas parecem frias e distantes. Sempre mal humoradas, falam por meias palavras. Brilham através do pó. E não gostam de piadas, não riem nem sorriem. São mandonas, querem que tudo seja feito da forma que elas escolhem. E quando não é reclamam muito e imperam a voz até que consigam fazer com que você se submeta as vontades delas.

- Isso não é uma boa imagem. Achas que posso ficar assim? Ser uma pessoa que não sorri, que não sente alegria e que obriga outras espécies a fazer o que eu quero?

- Não, Misha. Se você for mesmo uma bruxa. É um tipo de bruxa que eu nunca conheci antes. Você é amável, caridosa, tem sentimentos tanto com a sua família atual, quanto com a que faleceu. Você é uma pessoa que pensa nas pessoas, pensou em mim, e agora fala com Vlad sem ao menos julgar-me louco. Qualquer outra pessoa teria ao menos expressado a estranheza e tentado afastar-se. Mas você não o fez. Você está aqui sentada comigo olhando para as estrelas. Não acredito que bruxas olhem muito para as estrelas. Elas estão preocupadas demais com suas magias, com os controles de Marion que nunca as vi olhando para o céu. Olham apenas para baixo, para servos, e subalternos. Relacionam-se com vassalos. Eu nunca soube ao certo como é feita essa relação de bruxas com vassalos. Nunca quis seguir, proteger e ser fiel a uma bruxa antes. Minha família odeia bruxas pelo que Valkiria fez conosco. A questão é que mesmo sabendo o que você é não consigo odiá-la. Quero ao máximo protegê-la.

Misha esticou os lábios em um sorriso comedido sem dentes. Apoiou a cabeça no ombro de Rudah seus dedos entrelaçaram nos dele e percebo que o menino gostou do gesto carinhoso. Ela distraiu-se olhando para as estrelas até que dormiu. E ele não conseguia parar de olhar nas mãos entrelaçadas sem disfarçar que estava animado.

- Quando vai dizer a ela o sente? - pergunto, atrapalhando o seu transe.

Ele respira fundo como se fosse um fardo pesado que estivesse carregando.

- Não sei se devo dizer algum dia o que sinto. Desde que escrevi aquele poema Vlad, tenho pensado no que seria cortejá-la de fato. Minha família, você sabe, - ele balança a cabeça de leve para não acordar Misha - jamais entenderiam sentir-me assim por uma senhora de estado. Serei tratado como um vassalo. Não quero isso. Não quero que me olhem nem que pensem isso de mim.

- Ignorar o que sente e esconder dela por que sua família não aceita? Desde quando você se importa com o que eles pensam? Você é o filho rebelde! O filho que vive no mundo e não debaixo do teto deles. O filho que não honra as tradições da família e não vai pensar em unir-se por obrigação nem pela escolhas dos seus pais. Eu lembro-me muito bem! Você gritou isso quando saiu de casa pela primeira vez, avisou que não se importava com o que eles pensassem eles não iriam controlar nossa vida como controlam a vida de toda a família. Vai me dizer que logo agora você se importa com o que eles pensam?

- Sim, me importo que me vejam como um vassalo. Não quero ser um vassalo.

- Está dizendo que colheu as flores, escreveu aquele poema horrível, aceitou esse jantar romântico e contou tudo sobre nós para uma menina que não pretende cortejar?

- Não..., sim! Estou. Não posso cortejá-la.

O Espectro (Segredos de Marion #1) ✔Onde as histórias ganham vida. Descobre agora