Garota, interrompida

238 13 1
                                    


O VERMEER DO FRICK é apenas um entre três. Da primeira vez que fui lá,

porém, não reparei nos outros dois. Tinha 17 anos e estava em Nova York com

meu professor de Inglês, que ainda não me beijara. Ao deixar para trás os

Fragonard e entrar no corredor que levava ao pátio – aquele corredor escuro em

cuja parede reluzem os Vermeer –, eu pensava naquele futuro beijo, sabendo

que ele logo aconteceria.

Além do beijo, eu me perguntava se conseguiria me formar no segundo grau

mesmo levando bomba em Biologia pelo segundo ano consecutivo. A situação

me desconcertava, pois era uma matéria que eu adorava – adorava desde antes

da primeira reprovação. A parte de que eu mais gostava eram os gráficos de

recessividade genética. Eu gostava de investigar a sequência de olhos azuis em

famílias sem outras características além de olhos azuis ou castanhos. Minha

família tinha muitas características – realizações, ambições, talentos,

expectativas – e todas pareciam recessivas em mim.

Passei pela dama de vestes amarelas e pela criada que lhe entregava a carta,

pelo soldado com seu magnífico chapéu e pela moça que sorria para ele,

pensando em lábios cálidos, olhos castanhos, olhos azuis. Os olhos castanhos dela

me fizeram parar.

É o quadro em que uma moça espia para fora da moldura, sem dar atenção ao

robusto professor de música, que apoia na sua cadeira a mão de proprietário. A

luz é uma meia-luz invernal, mas o rosto da moça é luminoso.

Olhei dentro dos seus olhos castanhos e me assustei. Ela me avisava alguma

coisa – levantara os olhos da pauta para me avisar. Tinha a boca ligeiramente

aberta, como se tivesse acabado de respirar fundo antes de me dizer: "Não faça

isso!"

Dei um passo para trás, tentando ficar fora do alcance da sua aflição. Sua

aflição, contudo, impregnava o corredor. "Espere", ela me dizia. "Espere! Não

vá embora!"

Não lhe dei ouvidos. Saí para jantar com meu professor de Inglês, que me

beijou; voltei para Cambridge e levei bomba em Biologia, apesar de conseguir

me formar e, finalmente, enlouqueci.

Dezesseis anos depois, eu estava de volta a Nova York com meu novo e rico

namorado. Fizemos muitas viagens, pagas por ele, muito embora gastar dinheiro

o deixasse nervoso. Em nossas viagens, ele com frequência criticava minha

personalidade – aquela personalidade que um dia fora diagnosticada como

perturbada. Às vezes eu era emotiva demais; outras, excessivamente fria e

crítica. Fosse isso ou aquilo o que dissesse, eu o tranquilizava dizendo que gastar

dinheiro não era errado. Aí ele parava de me censurar, o que significava que a

gente podia continuar junto e, em uma próxima viagem, recomeçar o ciclo de

gastar dinheiro e críticas.

Era um lindo dia de outubro em Nova York. Ele já me atacara e eu já o

tranquilizara, e estávamos prontos para sair.

— Vamos ao Frick– ele disse.

— Nunca estive lá – respondi. Depois, achei que talvez já tivesse estado. Não

disse nada; aprendera a não discutir minhas dúvidas.

Assim que chegamos, reconheci o lugar.

— Ah! – exclamei. — Aqui tem um quadro que eu adoro.

— Só um? – ele disse. — Olhe esses Fragonard!

Não gostei deles. Deixei os Fragonard para trás e caminhei pelo corredor que

levava ao pátio.

Ela mudara muito naqueles dezesseis anos. Já não estava ansiosa. Na verdade,

estava triste. Era jovem e distraída, e seu professor bronqueava com ela,

tentando fazer com que prestasse atenção. No entanto, ela olhava para fora, à

procura de alguém que olhasse para ela.

Dessa vez, li o título da pintura: Garota interrompida em sua música.

Interrompida em sua música: tal qual acontecera com a minha vida,

interrompida durante a música dos 17 anos, tal qual a vida dela, roubada e presa

a uma tela; um momento congelado no tempo mais importante que todos os

outros momentos, quaisquer que fossem ou que viessem a ser. Quem pode se

recuperar disso?

Agora eu tinha algo a lhe dizer.

— Estou vendo você – falei.

Meu namorado me encontrou chorando no corredor.

— O que há com você? – perguntou.

— Não está vendo? Ela está pedindo para sair – respondi, apontando para a

moça.

Ele olhou para o quadro, depois olhou para mim. — Você só pensa em si

mesma. Não entende nada de arte.

E afastou-se para olhar um Rembrandt.

Desde então, tenho voltado ao Frick para vê-la e ver os outros dois Vermeer.

Afinal de contas, é difícil encontrar um Vermeer, e o de Boston foi roubado.

Os outros dois quadros são autossuficientes. As pessoas se entreolham – a

dama e sua criada, o soldado e a namorada. Contemplá-los é espiar por um

buraco na parede. E a parede é feita de luz – aquela luz de Vermeer, irreal e, no

entanto, totalmente plausível.

Uma luz como essa não existe, mas nós desejamos que exista. Desejamos que

o sol nos faça jovens e belos, desejamos que nossas roupas reluzam e deslizem

sobre nossa pele e, acima de tudo, desejamos que todos os nossos conhecidos

possam se iluminar com um simples olhar nosso, como acontece com a criada

que segura a carta e o soldado de chapéu.

A garota e sua música vivem em outro tipo de luz, a luz caprichosa e encoberta

da vida, que só permite que nos vejamos e aos outros imperfeitamente, e raras

vezes.

*Em inglês, nuts, que é também uma gíria para "maluco" (N. T.).


Garota, interrompidaWhere stories live. Discover now