7. Misterioso Alvoroço

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"Sem saber que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances de misterioso alvoroço que aos mais serôdios de coração sucedem em todas as sazões da vida, e a todos os homens, uma vez ao menos".
(Camilo Castelo Branco)

— Repete, Lili — pergunto, mas mal consigo ouvir a minha voz.

— Eu vou ser o queijo e você vai ser o pão — Ela enumera com os dedinhos — Será que Isa vai querer ser o presunto? — pergunta e logo em seguida responde — Acho que ela não vai gostar muito dessa brincadeira, mas não conta isso para tio Henrique, porque... — Ela recomeça a tagarelar, mas meus ouvidos começam a zumbir.

Tio Henrique.

Tio Henrique.

Henrique.

Não! Não pode estar acontecendo de novo.

Fecho os olhos com força e os abro novamente, mas nada muda.

— Aí a gente vai andar na pracinha com a minha moto das princesas — continua Alicia animada, pulando no colchão — Sabia que ela faz barulho igual a uma moto de verdade?

Continuo em silêncio.

Olho em volta e vejo como nada parece certo. Um quarto com a janela no lugar errado é a primeira coisa que não faz sentido. A janela fica atrás da cama e não na frente. Essa é uma escolha, porque quando amanhece o sol reflete nas paredes direto para o rosto. Eu também não tenho cortinas amarelas, na verdade eu nem tenho persianas, uso papel de presente colorido para cobrir os vidros e os atuais são de passarinhos amarelos em um fundo azul-marinho.

Eu não dormi na metade da cama.

É esse quarto que não é o meu.

Sento rapidamente e meu estômago responde com mau humor. Estou vestindo uma camisola longa e branca, bem bonita até, que não me lembro de ter comprado. As paredes do quarto são de um tom de bege elegante e se parece com o branco gelo de sempre. À esquerda, há uma entrada do que só pode ser um closet.

Um closet?

Porra!

Eu mal consigo guardar os meus vestidos no meu guarda-roupa de quatro portas. Um closet é o meu sonho de consumo há anos, mas meu apartamento é pequeno demais. Também não faz sentido reformar um apartamento alugado e eu preciso terminar de pagar as prestações do financiamento do carro.

Respiro com a boca, de maneira ofegante.

Ok. Esse é um sonho muito elaborado.

Encaro a parede do outro lado do quarto e tudo fica pior. Uma foto enorme cobre boa parte da parede. Moldura preta, combinando com o design da cabeceira. Lá estão eu e Henrique em escala de cinza. Eu o beijo na bochecha, enquanto ele responde com o meu sorriso favorito, o que me faz derreter.

Ah, Meu Deus!

Eu conheço essa foto. Me lembro desse dia, foi o meu aniversário de dezessete anos. Nós fomos a um parque de diversões.

Aquela semana foi terrível e eu estava torcendo para que meu aniversário passasse logo. Dias antes, minha tia-avó contou que estava morrendo e Monstrinha estava se mudando com o marido para a casa deles. Quando o dia chegou, eu estava bem mal. Henrique ligou de manhã, me perguntou o que eu faria à noite. Eu estava desanimada e respondi que ia dormir às seis da tarde para só acordar às duas da manhã. Passaria a virada do meu novo ano dormindo. Ele pediu que eu o esperasse até as seis e que vestisse jeans e tênis, porque poderia fazer frio. Henrique apareceu quando faltavam cinco minutos para o horário combinado. Ele estava nervoso e disse que precisava resolver um problema muito sério. Problema que, afinal, foi a indecisão entre ir primeiro na montanha russa ou nos carrinhos bate-bate.

Com tequila e com amor [Concluído] [VENCEDOR DO WATTYS 2017]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora