5. Realidade e imaginação

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"A função da viagem é de regular a imaginação pela realidade e, ao invés de imaginar como as coisas podem ser, vê-las como são."
(Samuel Johnson)

Todos os esforços para evitá-lo durante os últimos quatro anos parecem significar nada agora. Todos os argumentos para frear Elisa, quando ela começa a falar sobre Cora e seu Henrique, os avós dele. Toda a dedicação para fugir do ciclo vicioso no qual gira meus arrependimentos e, onde ele tem maior destaque. Todas as batalhas travadas para bloquear as memórias que acompanham sempre as últimas sílabas do nome dele. Toda a bravura para admitir alguma coerência naquele abandono disfarçado de término. Nada faz o menor sentido, porque Pedro Henrique está aqui.

Alguém precisa me explicar que espécie de pegadinha é essa. Ele simplesmente não pode ser o assunto do dia inteiro e se teletransportar para frente do meu prédio horas depois.

Por alguns poucos segundos, me esforço para me convencer de que estou no meio de uma vertigem provocada pelo álcool. Mas uma vertigem não sofre um acidente e deixa a rua inteira sem energia elétrica. Uma coisa como essa não aconteceria nem se eu tivesse bebido a garrafa inteira.

Diga alguma coisa, sua idiota!

Não sei se posso responder. Nunca sei o que dizer a ele.

Estou suando na palma das mãos e cheiro a bebida. Nem quero pensar na minha roupa. Pijamas com desenho de cerejas não é a melhor roupa para encontrar alguém que não vejo há tanto tempo, mesmo que Henrique já tenha me visto tantas vezes com bem menos do que isso. Mesmo assim, é desconcertante. Meu cabelo deve estar uma bagunça e é assim que me sinto.

Esfrego o rosto com a mão com a mesma mão que segurava a lanterna e assisto ela cair nos meus pés. Sincronismo zero, mas, ao menos agora, não posso vê-lo e não consigo reprimir um sorriso por conta disso. As pernas dele estão se mexendo, e aproximando do portão. A cada centímetro, me sinto mais tonta. E idiota por não conseguir parar de sorrir.

— Está tudo bem? Você se machucou? — Ele pergunta alarmado, provavelmente, por causa da súbita queda da lanterna.

Eu só estou bêbada, Henrique. E você é a última pessoa que pode me perguntar sobre machucados.

Eu quero chorar, bater e beijar esse homem. Não sei se nessa ordem, não sei se ao mesmo tempo, só não posso ficar pensando demais. Caminho a passos hesitantes até o portão. As chaves parecem estar perdidas em um dos bolsos da calça do pijama e nem lembrava de tê-las guardado. Demoro um tempo razoavelmente longo até segurá-las de maneira firme.

Em silêncio, deixo-o entrar.

O brilho no chão se levanta, quando ele recupera a lanterna e aponta para o meu rosto. Mal consigo encarar a luz, mas tenho certeza de que ele deve estar analisando a catástrofe que sou agora.

Os efeitos dessa proximidade são mais perigosos que os do álcool. É como se eu estivesse mais embriagada perto dele.

— Amanda. — Não é uma pergunta, é uma constatação.

Não aguento a luz no meu rosto e começo a caminhar em direção à entrada principal. Me esbarro na porta e sinto sua mão firme e gelada em meu braço esquerdo, antes que eu caia. Definitivamente, agora ele percebe que eu sou uma realidade banhada em suor frio e dormência. Talvez eu esteja à beira de um ataque cardíaco. Rosa me deu uma aula de primeiros socorros o mês passado, mas não me lembro se, na ordem dos sintomas, o coração acelerado vem antes ou depois da sensação de formigamento.

— O gerador — digo sem ter certeza de que é a palavra correta.

Henrique segura a lanterna e a luz tremula de maneira estranha em sua mão. Na competição de quem está mais cambaleante eu ganho, é claro.

Com tequila e com amor [Concluído] [VENCEDOR DO WATTYS 2017]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora