4. Amêndoas Amargas

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"Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados."

(Gabriel García Marquez)

Depois de um banho pareço melhor, embora ainda me sinta estranha. Parece que tudo está fora do lugar. Deve ser o peso do ano a mais ou acúmulo de drama do dia inteiro. Meu nariz ainda está um pouco entupido, mesmo depois das toneladas de vapor do banho quente. E de eu continuei chorando no chuveiro.

Não sou emotiva desse jeito, quero dizer, há muito tempo eu não choro tanto. Acho que a última vez foi no enterro dos meus pais, quando eu tinha onze anos.

É engraçado como eu me imaginava no futuro, quando era criança. Aos onze, achava que com vinte e três anos eu seria apresentadora de televisão e viveria viajando pelo mundo com a minha família, filmando meu próprio programa de televisão sobre a vida marinha. Acordando com os golfinhos era o nome do show.

Sim, eu era um pouco obcecada pelos Thornberrys.

Eu não devia estar tão melancólica. Deve ser culpa da tequila.

Sento em uma das banquetas da cozinha e sinto a brisa da noite que vem da janela aberta.

Suspiro cansada.

Monstrinha apareceu logo depois de colocar Lili para dormir. Ela me perguntou se eu queria conversar, mas não caí na armadilha. Elisa não conversa, basicamente ela fala sem parar. Dessa vez consegui fugir do velho monólogo. É sempre do mesmo jeito: ela começa dizendo que estou me fazendo de vítima da minha própria vida, sobre como é imaturo estar me prendendo por tanto tempo a algo que deu errado no passado e sobre não aceitar as consequências dos meus atos. Eu disse que estava bem, mas Elisa não aceitou, é claro.

Continuei assistindo e me sentindo um bebê, porque ela adora bancar a mãe zangada comigo. Ela cortou uma fatia enorme do bolo de chocolate e deixou sobre a bancada da cozinha e me encarou com as sobrancelhas erguidas, empinando o queixo. Depois, reclamou da minha irresponsabilidade, por não ser exemplo para as meninas e me mandou ir terminar de chorar no quarto. E também me ameaçou, dizendo que não ia limpar a minha sujeira de manhã. O segundo copo de bebida ainda está cheio, caprichei na segunda dose e o bolo de chocolate parece ainda mais delicioso agora. Não é a melhor combinação, eu sei disso, só que encontrar Pedro Henrique no dia do meu aniversário também não é.

A primeira garfada faz com que eu me sinta perto do céu. Como é que alguém tão má como Monstrinha pode cozinhar tão bem? Cozinhar para mim é como montar um quebra-cabeças daqueles dificílimos, em que cada dia se monta um pedaço. Até duas semanas atrás eu achava que os ovos precisavam cozinhar até partirem a casca e, por esse motivo, sempre achava que a gema acinzentada significava que estava podre. Culpei muitas vezes o dono do mercadinho da esquina por vender ovos estragados.

O segundo pedaço faz a ansiedade aliviar. Eu deveria estar dormindo agora e aproveitando a chance de poder esticar o sono até as duas da tarde. Dormir é sempre o melhor remédio para clarear a mente, mesmo que eu não consiga, de jeito nenhum, fazer isso agora.

A terceira garfada me faz sentir raiva, estou destruindo todos os meus esforços diários de chegar ao final do ano com um quilo a menos na balança. Eu tenho certeza de que essa quantidade de açúcar vai direto para o meu culote ou, na melhor das hipóteses, para as minhas coxas.

A quarta parece amarga, devem ser as amêndoas que torraram demais.

Amêndoas amargas é tão trágico como minha situação atual.

A quem estou tentando enganar? Não é por terem esquecido o meu aniversário. Por Monstrinha ter feito esse bolo incrível. Ou por causa desse presente estranho do meu vizinho, que parece mais uma oferta de condolências do que qualquer outra coisa. É por causa de Henrique. Eu o chutei e estou um caco. Estou aqui arrasada por tudo que não dá certo na minha vida, enquanto ele é um R1 em cardiologia, eu ouvi Elisa comentando com Mel outro dia. Aposto que ele deve ter se casado há dois anos e deve ter dois bebezinhos cheios de cachinhos à sua espera em casa.

Com tequila e com amor [Concluído] [VENCEDOR DO WATTYS 2017]Where stories live. Discover now