Diário dos mortos-vivos - parte 1

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RYAN


Encarar o fato de que Chloë, Gail e - talvez, até mesmo - Carl me viam como o estopim de uma revolução zumbi estava sendo cada vez mais estranho.

Chloë fazia progressos consideráveis a cada dia. Sua pele estava ficando branca - ainda não bege, mas pelo menos já não era mais cinza - e suas olheiras iam diminuindo aos poucos. O buraco em seu tórax já estava do tamanho de uma moedinha de um centavo.

Já Carl era um osso duro de roer.

Ainda estava do jeito que havíamos capturado-o, e alguns poucos progressos desde sua expressão de interesse em desenhos surgiram durante as semanas seguintes. O máximo de evolução que havíamos visto nele fora algumas expressões menos bestiais e irracionais. Mais nada.

Arrumar corpos para eles estava sendo cada vez mais difícil e arriscado. Já estávamos visitando bairros vizinhos em busca de pessoas mortas, mas os humanos de cada distrito pareciam estar se cuidando melhor do que antes. Numa incursão de cinco horas, Gail e eu achamos apenas dois corpos.

Tivemos que começar a racionar a quantidade que dávamos à Chloë, mas ela não pareceu se importar. Para falar a verdade, ela parecia quase conformada e satisfeita em dar a maior parte da "comida" ao seu pai.

E eu entendi o por que alguns dias depois.

Gail havia trazido um saquinho de balas para a Clínica em uma de nossa visitas matinais. A barulheira que ela fazia com a embalagem já estava irritando Chloë, que desviou o seu olhar de Skype (cujo corpinho estava aninhado em sua mão) para Gail e deu um rosnado baixo, que nada tinha a ver com sua condição zumbi.

– Casseta, Gail! - exclamou ela.

Gail e eu pulamos de susto e nos entreolhamos, só para cairmos na risada.

– Nossa... - Gail brincou, sacudindo o saco em uma das mãos em direção a Chloë - alguém voltou a ter TPM?

Funguei de desdém antes mesmo da almofada arremessada por Chloë acertar a cara da Gail.

Para minha agradável surpresa, Chloë parecia estar achando graça. Seu rosto pálido tremia como se reprimisse uma risada.

Ela foi até Gail e recolheu a almofada que havia jogado. Porém, se agachou e pegou uma das balas do saquinho que jazia ao lado de Gail, que fingia se estrebuchar.

Chloë observou a bala por alguns segundos e, para nosso choque, desembrulhou-a e a pôs na boca.

Gail pareceu assustada. Olhou para a expressão vazia de Chloë enquanto ela mastigava.

– Então? - indagou Gail - você... sente o gosto?

Chloë franziu a testa. De repente, seus olhos se arregalaram.

– Uva - murmurou por fim.

Gail olhou para o saquinho e seu queixo caiu.

– Exatamente...

Olhei para Chloë, que parecia imensamente feliz em sentir o gostinho absurdamente doce da bala. Senti um aperto bobo na garganta ao ver minha zumbi tão alegre, reaprendendo à se alimentar outra vez.

Ela engoliu, ainda saboreando a bala que lhe escorria pela garganta.

– Caramba... - Gail sorria para mim - o corpo dela está tolerando comida. Você sabe o que isso significa?

Claro que eu sabia. Chloë podia começar a largar a dieta necrófaga. Era um avanço que nem mesmo eu havia sequer imaginado.

Chloë fungou, ainda me olhando com uma expressão sonsa. E então, apertou os olhos, parecendo querer chorar.

– Ah, não - eu disse brincando - você vai chorar por que comeu uma bala?

Ela tentou me olhar de cara feia, mas tudo o que eu ganhei foi um sorriso absurdamente lindo. Sem brincadeira, era o sorriso mais lindo que eu já vira um zumbi ou um humano abrir para mim.

Droga, como eu gostava daquela menina.

– É - ela choramingou, ainda sorrindo.

Enquanto aquela cena bizarra ocorria, pude observar que Carl encarava outra vez a filha, parecendo confuso.

Sua boca se mexeu, e um rosnado saiu de sua boca arranhada.

Nas primeiras três vezes, eu não entendi. Mas a quarta vez foi bem clara. Tão clara que nós três recuamos vários passos ao ver o velho zumbi murmurar.

– Chlooooooë...

Tudo o que eu registrei em seguida foi Carl, de algum modo, se desprendendo e correndo em direção a Chloë.


Voltando à ViverWhere stories live. Discover now