Uma morta quase viva

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RYAN


Era difícil acreditar que um quase-assassinato, um beijo, uma invasão, um banho e uma discussão tinham acontecido em menos de duas horas.

No início, achei que ia demorar uns dois dias só para Gail se recuperar do susto. Mas ela me surpreendeu com um discurso "pró-humanitário-zumbi" que eu não esperava nem um pouco.

Ainda achava a ideia insana, mas com Chloë me bafejando a nuca, era impossível discordar de qualquer coisa na cara dela. Desde minha defensiva, ela ficara um tantinho agressiva. Tipo, realmente estava agindo como uma zumbi outra vez. Não animalesca, e sim uma zumbi chata que não desgrudaria do meu pé até eu resolver ajuda-las naquele "programa de cura".bizarro.

O primeiro passo foi Gail e eu sairmos numa incursão para procurarmos um local adequado, tão seguro, adaptável e discreto quanto o shopping.

Para nossa sorte, uma antiga loja de conveniências á duas quadras dali era perfeito para nossa "clínica". Era um bocado escuro, tão encardido que se disfarçava facilmente na paisagem destruída do bairro. Já tinha tábuas que poderíamos utilizar para vedar janelas e portas. E tinha uma entrada quase impossível de se adivinhar aonde era: um buraco na laje, provavelmente uma antiga claraboia que dava direto para o centro da loja. A saída era um duto de ventilação que, por uma estranha razão, possuía uma pequena escadinha de ferro sem-vergonha que moía todos os dedos na subida. Para a alegria insana de Gail, ali também havia um chuveirinho vagabundo e roupas abandonadas.

– Perfeito - Gail disse, depois de darmos uma arrumada em tudo - é quase impossível de ser suspeito...

– Desde que os zumbis que entrarem aqui não façam barulho - resmunguei.

Gail me deu uma tapa de leve na nuca.

– Deixe de ser pessimista, garoto! Se não está fazendo isso para o bem da humanidade, faça mela sua namorada!

Suspirei. Eu precisava era ir para casa e ficar na companhia da minha namorada-zumbi maluca. Mas Gail deixara claro que, para o meu bem e o de Chloë, era melhor que eu a trouxesse para o novo abrigo, bem longe dos olhares assassinos do Comitê. Ali ela ficaria mais segura.

Mas outro problema que eu não via como Gail ia resolver era o abastecimento de comida dos "pacientes". Aonde ela estava pensando que ia arrumar tantos cadáveres? No Instituto Médico Legal?

Gail parecia tão animada com a iminente recuperação da humanidade que não pude estragar sua felicidade com essas perguntas.

O segundo passo, terrivelmente arriscado, insano e o escambau, foi tirar Chloë de casa e trazê-la para a Clínica. Para evitar olhares, saímos pela cratera da loja; enquanto Gail tampava-a com a tábua e a escrivaninha por dentro e saía dando a volta pelo interior do shopping. Cobri o rosto de Chloë com minha jaqueta e a levei pela cintura, guiando-a. Ela espirrou tanto com aquela roupa que lhe tampava a boca que chegou tremendo no abrigo.

Fazer aquela zumbi subir na laje é que foi osso. Chloë, desde que morrera - até onde eu sabia - só sabia ir para frente, para trás e para os lados, igualzinha a um Uno Mille. Ensinar aquela criatura á subir foi como ensinar um bebê de cinco meses á andar.

Gail ficou tão agoniada que empurrou Chloë sem cerimônia nos últimos dois degraus, fazendo-a rolar pela laje feito uma bola de gude. Fiquei paralisado, dividido entre rir e falar para Gail correr pela própria vida, mas Chloë reapareceu pela jaqueta com um olhar dividido entre raiva e humor. Parecia ter achado a queda tão engraçada quanto nós.

Voltando à ViverOnde as histórias ganham vida. Descobre agora