Capítulo 9 - Jesus of Suburbia

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    A cortina de algodão cor de creme tinha um toque tão macio quando percorrida pela mão morna e pálida de uma garota de longos cabelos pretos e olhos intimidadores. Ela fazia seu caminho pelo quarto bagunçado, os coturnos negros como a noite maltratando o assoalho e tropeçando pelas bordas do tapete cheio de manchas de café. Um par de castanhos olhos brilhantes observava seu trajeto solitário, um sorriso discreto em seus lábios e o corpo estirado no pequeno sofá de couro negro. O silêncio era quebrado momentaneamente por bufos descontrolados e suspiros entrecortados vindos da nervosa órfã que não conseguia parar de mover suas mãos por seus cabelos, e risadas baixas e claras de seu melhor amigo, visivelmente divertindo-se com toda a situação.
- Cale a boca.
- Eu não disse nada! – Hyago defendia-se, os olhos ainda presos a ela, que ainda não conseguia controlar o nervosismo e a angústia evidentes. Katherine tentava colocar a saia azul marinho no lugar, a blusa de botões branca já amassada de tantas vezes que ela se abraçava em busca de conforto. Mas nada parecia trazer um pouco de paz naquela manhã cinzenta de sábado. -Mas você pensou.
- Ok, venha cá – Não foi necessário mais do que um pulo do pequeno sofá e um ou dois passos para que Hyago se colocasse atrás de Katherine, umas das mãos grandes e finas abraçando a cintura da garota, a outra entrelaçada a pequena mão macia e totalmente fria. Com o queixo apoiado no ombro dela, ele conseguia sentir o perfume de morango que emanava de seus cabelos bem cuidados. Chegava a ser cômico, a garota escondida atrás de sua pose de durona, mas que tinha paixão por cada fio de cabelo comprido.
- Só me leve embora daqui. Eu estou tão cansada, Hyago. Você nem imagina o quanto – Katherine brincava com a barra da manga do casaco xadrez do garoto, sua cabeça pesada por idéias errôneas e vontades avassaladoras que tomavam conta de cada célula de seu corpo. A janela do segundo andar nunca lhe parecera tão brilhante e convidativa quanto naquele momento –E ela...essa maldita mulher só piora toda a situação. Por que ela não consegue me deixar em paz?
- Esma só quer o seu bem. Na cabeça dela, essa vida e as decisões que ela toma são o melhor pra você, Ka.
- Não. Essas decisões de merda eram o melhor para aquela maldita. Eu não sou ela, Hyago. Que inferno, eu não sou ela. – Sua voz não passava de um sussurro quando o amigo a puxou para mais perto, apertando seu corpo contra o dele, confortando-a como podia – Sabe, às vezes eu penso... Se não seria melhor se eu também estivesse naquele carro. Aquele carro que levou os dois desgraçados que me colocaram nesse mundo de merda para debaixo da terra.
- Chega. Chega de drama. Cale a boca, Katherine. Eu não estou brincando – Ele a repreendia, a voz um tanto rude e os olhos castanhos estreitos como fendas – Vamos lá, toda essa chateação só porque Esma está te obrigando a ir à igreja com eles?
- Não fale assim comigo, porra. Você sabe que não é só por isso. São tantos anos engolindo em seco cada vez que ela tenta me mudar, que tenta me colocar num pedestal. Cada critica escondida e cada tentativa mascarada de me fazer ser uma pessoa diferente. – ela riu seca, sentindo a textura da mão do melhor amigo, tentando absorver um pouco de seu calor – A minha vida toda é uma grande piada, não é Hyago? Uma piada totalmente sem graça.
- Sua vida só está começando, Ka. Nossas vidas ainda precisam inventar muitas peças para nos abalar. Você não pode desistir agora.
- Eu não sei se ainda tenho forças. E ainda há o desgraçado do Michaelson para piorar a minha vida...
- Shh, já tivemos essa conversa – Hyago sussurrava calmamente em seu ouvido, como se fosse somente outra canção de ninar de seus tempos de orfanato – A noite de ontem foi um deslize, Katherine. Nós vamos mantê-lo longe de você. Chega de mistérios. Mistérios só trazem mais dor, dor e infelicidade, e você não precisa disso agora. Você precisa de um pouco de sol nos seus dias nublados, meu bem. Você é forte. Você pode mandá-lo embora a hora que quiser.
- Quando eu era pequenininha – ela girou seus calcanhares, ficando frente a frente com o garoto, a cabeça repousada em seu peito enquanto ele a abraçava o mais fortemente que conseguia, o cheiro de loção pós-barba entrando sem permissão pelas narinas da garota, sua voz nada mais do que um sussurro – Eu prometi a mim mesma que nada me faria chorar novamente. Que ninguém era digno das minhas lágrimas. Eles me desarmaram, Hyago. Roubaram minha armadura, me deixaram nua, insegura e indefesa frente ao inimigo. Mas é hora de voltar a lutar, não? Hora de voltar ao campo de batalha.
- Exatamente. E eu vou estar aqui, amor. Vou estar aqui a cada minuto que você precisar de mim – um leve beijo foi depositado na testa fria da garota que tentava se prender cada vez mais a segurança de Hyago. Eram naqueles momentos em que ela podia ser quem ela realmente era que tudo parecia tão fácil. Tão certo. Ali, a vida não parecia uma vadia sem coração disposta a foder cada minuto em que seu coração bombeava sangue. Ali, só parecia que a garota havia feito todos os caminhos errados, as escolhas erradas, e agora era a oportunidade perfeita de corrigi-las - Eu vou te colocar de pé, empurrar-te para frente e te consolar até a minha última respiração entrecortada, Ka. Eu me prometi isso no dia em que te conheci. E essa promessa eu vou levar até o fim.
O silêncio cúmplice demonstrava que cada um compreendia todas as coisas implícitas ali, cada uma delas, separadas e unidas intimamente. E palavras não eram necessárias, eram tolas e dispensáveis como copos plásticos no final de um festival. Ela não ser permitiria chorar, nem que fosse aos braços de Hyago e por uma única vez. Não. Aquela era a única parte dela que ainda não fora corrompida por forças externas. Ela poderia ter somente se aninhado em seu colo e deixado que o garoto cantasse para que ela dormisse, exatamente como era no antigo orfanato ao qual pertenciam, não fosse a estridente voz de Esma no corredor, e logo após sua silhueta desenhada num tailleur creme de botões azuis petróleo, os fios de cabelo ruivos presos num coque elegante e os lábios pintados de carmim. Seu sorriso tremeu ligeiramente ao ver a filha adotiva abraçada ao protegido dos Kallister, como se aquele órfão desajeitado não fosse suficiente para tomar conta de sua preciosidade. Mas sua voz era doce e seus olhos brilhavam novamente as primeiras palavras gentis soltas rapidamente.
- Katherine, querida, está na hora. Você pode se juntar a nós se quiser, Hyago. Seria ótimo.
- Agradeço o convite, senhora Dawson, mas, como a senhora sabe, minha família é judia, e meus pais devem estar me esperando para visitarmos meus avós nesse exato momento – a voz de Hyago era calma enquanto ele se soltava de sua melhor amiga, uma mão ainda entrelaçada na dela mesmo a distância. Sorrindo como se para encorajá-la, ele voltou-se a matriarca dos Dawson mais uma vez – Espero que tenham um bom dia, senhora. Nos vemos depois, Ka. – um beijo leve nas costas da mão da garota e um sorriso leve ao passar por sua mãe adotiva marcaram a despedida de Hyago. Agora ela se sentia um tanto deprimida, um tanto sozinha. Mas a tentativa de simpatia desmedida de Esma a fez colocar sua máscara de rebelde novamente. Passando pela mulher sem dizer nada, a garota desceu os degraus um por um, se sentindo somente um pouco melhor pelo sorriso que Rick lhe abrira de sua poltrona vermelha.
- Estou me sentindo culpado.
- Não sinta. Eu sei que não é sua culpa – ela sentou-se no apoio de braço da poltrona, os olhos pousados no tapete marrom que cobria o delicado assoalho, a mente perdida pela análise das diferenças entre Esma e Rick. Katherine nunca havia parado para pensar em como os dois se conheceram, porque se casaram e se eram felizes juntos. Pelo conjunto da obra que presenciava todos os dias, tinha quase certeza de que aquele era um caso explicito de 'os opostos se atraem'. Talvez algum dia ela perguntasse para o patriarca, mas aquele não era o momento.
- Hyago comentou que você não estava muito bem. Quer conversar sobre isso? – os olhos cor de avelã de Rick expressavam uma preocupação tão genuína e palpável que fora impossível para Katherine não abrir um pequeno sorriso.
- Hyago precisa aprender a calar a boca se quiser sobreviver. Eu vou ficar bem. Só quero que isso termine logo.
Foi somente um pequeno instante depois que Esma pisou no último degrau, os olhos atentos as duas pessoas na sala. Com seu melhor sorriso doce ensaiado esperou o marido levantar-se num pulo sem dizer uma palavra sequer. Agarrou-lhe o braço esquerdo com força, como se pedisse alguma ajuda. Rick somente beijou-lhe a mão, oferecendo o outro braço para a pequena falsa rebelde, como se pedisse, somente por aquela manhã, uma trégua. Uma bandeira branca no meio da guerra.
O silêncio reinou por boa parte do caminho no Audi vermelho. A voz de John Mayer saia alta pelas caixas de som do radio do carro. Rick balançava a cabeça, como se acompanhasse a balada romântica tão imprópria para a ocasião. Pousou os olhos cor de avelã em Katherine pelo retrovisor, a culpa ainda os embaçando. A garota mordia o lábio inferior, o pensamento voando longe, o olhar fixo num ponto qualquer da poltrona de Esma.
- Ka, meu bem, você tem certeza que vai se sentir confortável?- a voz de Ricky soou alta e confiante acima da música, como se não passasse de um comentário qualquer sobre o tempo ou as noticias do dia- Sabemos de suas convicções. Ainda dá tempo de voltar e te deixar em casa.
- Não – a voz de Esma foi alta e clara em meio ao silêncio momentâneo que se instaurou – Somos uma família. Precisamos agir como uma família. É o que somos, não? Uma família. – o nervosismo em cada nota aguda que passava por suas cordas vocais era claro como água. Suas mãos estrangulando a pequena bolsa vermelha que carregava em seu colo só contribuíam para aquela imagem.
- Mas não podemos obrigar Katherine a participar de algo no qual ela não acredita, Esma. Nós tivemos essa conversa anos atrás. Não é justo. Não é correto. – as mãos longas dele apertavam o volante com intensidade, a reprovação pelas atitudes da mulher estampada em seu rosto.
- Nem tudo na vida é, Rick. Todos têm que ceder em alguma coisa. Katherine não vai morrer com um pouco de luz e desejos de amor e paz. Vai ser bom pra ela. Bom para a família.
- Mas...
- Sem mais. Veja, chegamos. Um sorriso, por favor.
Katherine piscou os olhos castanhos para Rick, um pequeno sorriso amarelo surgindo em seu rosto, pedindo para que ele não se preocupasse. Era somente mais uma prova de fogo, uma das muitas a que ela já havia tido durante sua curta vida. Demorou-se um pouco ao sair do carro, batendo a porta com força suficiente para descarregar cada frustração que se passava por seu cérebro tão complicado naquele momento.
A luz do dia, a igreja já não era tão arrepiante quanto a noite. O portão enferrujado estava aberto, convidando cada cidadão a se aventurar pela grama verde e macia do pátio, e o sol batia alegremente nas paredes de pedra rústica. Metade da cidade comparecera ao culto, com seus cabelos arrumados, grandes chapéus coloridos e roupas elegantes. A garota se perguntava se aquele era algum tipo de desfile de moda, uma demonstração de poder, uma ostentação de riquezas. Ou talvez fosse só um show de horrores. Caminhando atrás dos pais adotivos, sentiu um arrepio passar rapidamente por sua espinha quando adentrou a fria construção. Os bancos compridos e marrons ocupavam a maior parte do lugar. A frente um homem alto, de cabelos grisalhos curtos e olhos profundos e extremamente azuis. As rugas em torno dos olhos o faziam parecer mais velho do que realmente era. As mãos estavam juntas sob o paletó grafite que provavelmente era de alguma grife famosa, a camisa azul destacando-se no conjunto final. O olhar tinha um que de bondade programada e uma intensidade assustadora, e o sorriso tranqüilo transmitia sinceridade. O pastor Michaelson era ao mesmo tempo tão igual e tão diferente de seu filho.
Esma e Rick caminhavam rapidamente pelo corredor um tanto estreito da igreja, os braços dados e os passos elegantes sob o tapete longo e vermelho. A única coisa que Katherine temia naquele momento era a exposição pública e desnecessária que ela sofreria se os planos de seus pais adotivos fossem seguir em frente e cumprimentar o pastor. Mas o alívio de vê-los entrando discretamente na segunda fileira de bancos durou somente o tempo do choque da cena seguinte se desdobrar diante de seus olhos castanhos. Uma mulher alta, de cabelos negros como a noite curtos e repicados e lábios voluptuosos e vermelhos, assim como as maçãs do rosto salientes , levantou-se para abraçar Esma com carinho. Do alto de seu vestido azul petróleo os olhos cinzas carregavam um olhar felino, os lábios curvados num sorriso encantadoramente misterioso. Duas características que a garota conhecia muito bem, apesar de nunca ter visto a mulher graciosamente perigosa antes.
Mas quando Rick beijou sua mão longa e pálida e Katherine deixou os olhos deslizarem pelo resto da fileira silenciosa as coisas se tornaram muito mais claras. Os cachos loiros de Angelina balançavam alegremente enquanto ela conversava com alguma patricinha da fila da frente, os olhos cinzas brilhando de excitação com uma fofoca qualquer. E ao seu lado, imponente em seu blazer negro, Klaus e seus olhos azuis provocadores lhe sorriam convidativos. Aquilo seria muito pior do que ela jamais imaginara. Pior do que os olhos inquisidores da sra. Michaelson presos nos dela quando Esma e Rick se acomodaram, deixando o caminho livre paraKatherine e a ponta de insegurança que se plantara com força em seu coração. Mas a esposa do pastor lhe sorriu ternamente, puxando-a para um abraço firme e delicado, a voz doce e marcante soltando as palavras com a calma de um dia de verão.
- A pequena Katherine Dawson. É tão gratificante finalmente conhecê-la, querida. Só tenho ouvido bons comentários sobre você.
- Ahn... – Se não fosse o fato de a mulher ter dito seu nome ela com certeza diria que ela havia se enganado redondamente de pessoa. Bons comentários a respeitodela? A última coisa que Katherine possuía era uma boa imagem ou admiração dos moradores daquela pequena cidade. Mas havia aquela sensação, a mesma que ela sentia quando junto a Klaus, de que aquela mulher tão imponente sabia muito mais do que transparecia. E um alerta vermelho brilhante em seu cérebro parecia gritar: 'perigo'. – É um prazer conhecê-la, senhora Michaelson.
- Você pode me chamar de Angel, meu bem. Há um lugar para você ao lado de Klaus – ela apontou distraidamente o filho mais velho – O culto já vai começar.
Mordendo o lábio inferior nervosamente, a garota espremeu-se no pequeno corredor até o lugar que Angel havia lhe indicado, os pensamentos a mil. Encarar Klaus tão próximo quando havia jurado que não cairia mais em suas tentações era como o seu teste final, o primeiro passo para uma nova realidade. Mas o garoto parecia não notar sua proximidade, ou melhor, fingia perfeitamente que não notava, os olhos presos em uma página qualquer de sua Bíblia já gasta. Talvez aquilo não fosse tão difícil afinal, Katherine iludia-se. Distraidamente, ela observava Esma conversar com Angel e Angelina, enquanto Rick tentava achar algo em seu livro de canções. A igreja ia enchendo aos poucos, o pastor Michaelson sorridente cumprimentava seus fiéis. Era notável todo o respeito e admiração que os cidadãos tinham por ele, como se aquele homem realmente fosse divino.
Seus olhos começavam a ficar pesados com a falta de entretenimento notável daquele lugar. Toda a paz que Esma desejava que ela absorvesse estava ali, afinal, transformando-se em uma carga de sono excepcional. Talvez Katherine realmente tivesse cochilado discretamente no frio banco de madeira, não fosse o toque quente de uma mão forte deslizando por sua coxa firme descoberta. Um arrepio atravessou sua espinha, fazendo-a engolir em seco e manter seus olhos pretos em alerta. Seu coração vibrava, mas seu cérebro a obrigava a tomar algum tipo de atitude. Klaus pressionava sua pele, desenhando pequenos círculos e se aproximando cada vez mais da garota, que permanecia estática, como se aquilo fosse desmotivá-lo ou algo do tipo. Mas no fundo, no fundo ela sabia que não iria.
- Bom dia – o pastor Michaelson anunciou em sua voz grave, passional – Que as graças do Senhor estejam conosco nessa manhã abençoada. Levantem-se, por favor.
Katherine suspirou aliviada no momento em que Klaus separou-se dela, colocando-se em pé para que algum tipo de louvor aos céus fosse feito. Ela não queria ouvir nenhuma palavra do que o pai de Klaus tinha a dizer. Não havia Deus nenhum olhando por ela. Não havia ninguém olhando por ela.
O barulho dos fiéis voltando aos seus bancos encheu a pequena igreja, cada um prestando o máximo de atenção nos pequenos momentos de reflexão que o pastorMichaelson lhes propiciava. A garota já havia se acostumado com o silêncio incomum vindo de Michaelson e com seus toques insolentemente provocadores, por isso o pequeno gesto carinhoso vindo do garoto nos momentos seguintes lhe deixou realmente surpresa e intrigada. O modo com ele havia deslizado uma de suas mãos diretamente para segurar uma das dela com uma delicadeza admirável, o polegar desenhando círculos sobre sua palma macia. Foi um tanto quanto impossível não olhar na imensidão que eram seus olhos azuis naquele instante, um sorriso de canto se formando nos lábios pecadores.
- Isso não é algo que você vai ouvir de mim com freqüência – ele sussurrou, prendendo a atenção da garota por mais um tempo – Mas eu estou genuinamente feliz pela sua presença aqui hoje.
- Por quê? – E lá ia ela de novo, deixar-se envolver por seus mistérios e seus jogos de palavras.
- Você imagina o quanto é difícil ter que estar aqui todos os dias e fingir que você está interessado? Como é uma merda ouvir toda essa gente perguntando quando meu pai vai se aposentar e quando vou assumir o lugar dele? Ter que repetir coros de aleluia e rezas enquanto eu queria estar fazendo qualquer outra coisa no mundo?
- Achei que não se importasse – ela observava suas mãos juntas meio impressionada com a perfeição com a qual se encaixavam. O contraste de temperaturas tão agradável. Aquela era mais uma maldita peça que seus olhos gostavam de lhe pregar, motivados por uma parte oculta de seu cérebro que apreciava cada fração de seu estranho convívio com Klaus.
- Não me importo. Só estou de saco cheio. Estou com medo de um dia explodir uma bomba aqui no meio num momento de fúria – ele riu, sem humor, os olhos fixos em seu pai enquanto soltava as palavras levemente – Mas de algum modo você me acalma. Eu não tenho tantas tendências homicidas com você por perto. É um motivo para agüentar até o final.
- Merda, Klaus – ela resmungou, seu cérebro havia levado um nó de escoteiro, impossível de ser aberto – Eu não consigo te entender. E isso me deixa louca.
- É essa a intenção – o sorriso irônico estava de volta ao lugar que pertencia, uma sombra do Klaus que ela conhecia passando por seu rosto – Você não precisa entender nada.
- Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine – a voz do pastor Michaelson se sobressaia naquele momento, e algo a obrigou a ouvir aquele pequeno trecho. Klaus bufou ao ouvir aquelas palavras, mas silenciou por um instante - E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, eu nada seria. Ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é paciente, é benigno; o amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera e tudo suporta. O amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor. – ele continuara sorrindo. Era algo bonito na teoria, Katherine pensara. Mas ela tinha chegado até ali sem o amor verdadeiro, não? E ela com certeza era alguma coisa. Uma fagulha, uma centelha. Ela iria até o fim, iria sozinha, contra todas as teorias possíveis. Mas a conversa com Klaus ainda a assombrava.
- Corintios 13* – Michaelson resmungou – ele gosta desse. Sempre dedica para minha mãe.
- Eu não conheço – respondeu vagamente – Não acredito em Deus, Klaus. Não é algo que faça sentido pra mim.
- Mesmo? – ele pareceu surpreso- Isso só torna tudo mais interessante. Meu Deus, tudo se torna melhor a cada instante – ele apertou sua mão – Estou feliz que está aqui por que você é minha distração favorita, Ka. É meu pequeno escape para a perdição que eu tanto aprecio no meio de toda essa pureza e amor. É divertido, excitante e perigoso, você não acha?
- Não. Não acho. Isso tudo precisa acabar, Michaelson. Agora.
- O que, o culto? – ele se fazia de desentendido, ela podia notar – Já está quase no fim, atéia. Espere um pouquinho mais.
- Você sabe do que estou falando. Disso – ela levantou um pouco as mãos juntas, os olhos presos nelas – Essa coisa estranha que eu não faço a minima ideia do que é, mas que está me deixando louca. Acabou, Michaelson.
Ela pode ouvir uma risada genuina vindo da direção dele, como se ela acabasse de contar uma piada realmente engraçada. Mas a resposta ficaria para depois que o pastor finalizasse seus pedidos de glória. Finalizando com um 'muito obrigado' e um desejo de paz a cada um presente ali, ele sorriu, atendendo alguns fiéis que pediam bençãos especificas. Katherine só queria ir embora o mais rápido possível.
- Katherine, Klaus, Angelina, meus queridos, por que não vão indo lá pra fora enquanto esperamos o pastor aqui? – Esma parecia radiante – Encontraremos vocês daqui a pouco. Klaus concordou, oferecendo o braço para Katherine num gesto de cavalheirismo que arrancou suspiros de Angel e Esma. Ela sabia que aquilo era proposital, para deixa-lá mais irritada do que o normal. Mas aceitar não deixava de ser uma provocação, afinal. Angelina passou a frente dos dois, indo encontrar-se com alguns amigos que já estavam parados na porta.
- Você sabe que não vai ter fim, Katherine – ele sussurrou discretamente ao seu ouvido.
- Quando um não quer, dois não brigam.
- Exatamente. Esse é o problema. Você sabe que nós dois sabemos o que queremos.
- Eu quero que isso termine.
- Não. Você finge que quer isso. Pra parecer forte, pra não parecer submissa, para não deixar-se envolver, porque você não suporta a ideia de ser mais fraca. Admita, Katherine. Você está tão viciada em mim que faria qualquer coisa para ficar mais perto. É hora de parar de fazer doce.
O sol os acertou em cheio quando sairam do lugar. Caminhavam pelo gramado com aquela conversa tão estranha, não dando muita importancia para quem estava ao redor, presos a bolha de tensão que todas aquelas evidências lhes traziam.
- Você está errado.
- Prove.
Os olhos azuis pareciam queima-la com a iluminação intensa do sol naquela parte do pátio da igreja, os dois frente a frente, desafiando-se. As palavras haviam sumido de sua boca, escorrido de volta por sua garganta e sumindo em algum lugar de seu corpo. O modo como ele lhe envolvia com palavras, como moldava seu cérebro a suas vontades era a coisa mais doentia que ela já havia presenciado.
- Você é simplesmente o ser humano mais prepotente, egocêntrico e mimado que eu já tive o desprazer de conhecer, Michaelson – foi tudo que ela conseguiu soltar, bufando pela ineficiencia de cada palavra.
- E você está sendo infantil porque sabe que estou certo. Bingo.
- Vá para o inferno, Klaus – suas mãos estavam fechadas em punhos, a irritação tomando cada pequeno pedaço de seu corpo jovem. Uma faca teria sido de extrema utilidade naquela hora.
Michaelson riu novamente, dessa vez alto e claro para que qualquer um pudesse escutar. Mas em sua falsa bipolaridade, em um minuto já estava sério novamente, maquinando algum plano diabólico em seu cérebro perversamente genial.
- Você quer ter o poder de escolher não, é? Um 'livre arbitrio', já que você alega que eu estou lhe privando disso – ele sorria malicioso, os olhos em chamas – Então você o terá, Katherine. Estarei te esperando, a meia-noite. Você sabe onde me encontrar. Vamos sair comemorar meu aniversário. Você será meu presenteperfeito, novo, brilhante, e extremamente delicioso. Eu esperarei, e entenderei caso você não apareça. Mas – ele olhou para o céu, fingindo estar pensativo – os ventos me dizem que você vai aparecer.
- Você está fazendo besteira. Está assinando sua sentença de morte. Vai se arrepender de sua insolência.
- Uh, mas eu não tenho medo. Diferentemente de você, Ka, eu gosto de pagar pra ver.
Klaus beijou-lhe a bochecha delicadamente, rindo baixo em seu ouvido antes de afastar-se em direção a um grupo de beatas. Com o cérebro cheio de informações confusas novamente, Katherine o observava a distância, tentando pela primeira vez, agir como seu tão odiado colega. Um plano diabólico de dominação estava prestes a ser formado.

*Jesus of Suburbia é uma canção ÉPICA do Green Day, uma das minhas favoritas deles, sobre um certo Jesus do subúrbio
*Coríntios 13 : Coríntios é como é conhecida a primeira epístola de S. Paulo à igreja em Corinto. É nesta carta que é encontrada a famosa passagem sobre a importância do amor genuíno, no capítulo 13. Por isso, Coríntios é considerada uma das epístolas mais poéticas do "Apostolo dos Gentios" como Paulo de Tarso chegou a ser chamado.



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