Capítulo vinte e dois - A origem de Hikari

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Enquanto era puxada escadaria acima, Sofie mantinha os olhos fixos às algemas em seus pulsos. Mas não era exatamente naquele objeto que sua mente se fixava. Abaixo daquele metal que se prendia ao seu pulso esquerdo, uma fina corrente podia ser sentida em decorrência da pressão exercida pela algema: a pulseira que Hikari havia lhe dado.

Desligando-se momentaneamente da realidade ao seu redor, ela viu-se imersa em lembranças de dezessete anos atrás.

– Olhe para ela, Sofie.

Sentada na cama, de costas para aquele que lhe fizera tal pedido, Sofie não disse nada. Permaneceu imóvel, fitando o tecido marfim da camisola que cobria o seu corpo. Será que Marco não sabia que lhe pedir aquilo seria exigir demais? Havia enterrado sua filha Giulia há dois dias e, ao menos, tivera seu momento de luto. Horas depois, estava sendo dilacerada pela dor do parto e colocando uma criatura repulsiva no mundo. Por que não era aquela coisa no caixão, ao invés de sua pequena Lia?

Depois de tudo aquilo, por que Marco insistia para que ela olhasse para aquele ser?

– Sofie, por favor. – Ele repetiu.

– Tira isso daqui, Marco. – Ela rebateu, ainda sem olhá-lo.

– "Isso" é um bebê, Sofie.

– Minha filha era um bebê. Agora está morta.

– "Nossa" filha, Sofie. Não ache que não estou despedaçado também.

Ela suspirou, sentindo-se péssima por seu próprio egoísmo. Marco estava arrasado, e toda aquela situação não era nada fácil para ele também. Não entendia porque ele não optou por simplesmente deixá-la no mundo dos youkais, quando se deparou com sua barriga. Não seria a atitude que qualquer homem teria? Mas, não! Ele a beijou, com a mesma paixão de sempre, e lhe garantiu que tudo ficaria bem, da mesma forma que fizera quando ela, aos dezessete anos, lhe contara que teriam um filho.

E agora, ele não deveria ser o primeiro a desejar matar aquela criatura que havia acabado de vir ao mundo? Mas ele não parecia sequer odiá-la.

– Eu quero a nossa filha de volta. – Foi tudo o que ela conseguiu pronunciar. Era o que ela mais repetia nos últimos dias. Era a única vontade que tomava conta de seu ser.

Era como se não sentisse mais fome, sede, frio ou vontade para qualquer coisa. A única informação que seu cérebro repetia era aquela: queria sua filha de volta. Que dor mais dilacerante era aquela?Já ouvira falar várias vezes sobre aquilo, mas agora, enfim, podia ter a confirmação: não havia no mundo nenhum sofrimento mais avassalador do que a perda de um filho.

– Vamos, olhe para ela. – Ele tentou mais uma vez, com uma paciência inabalável.

– Marco, por favor. Se eu olhar pra essa coisa, será para matá-la.

– Você não teria coragem de fazer mal a ela.

Respirando fundo, Sofie finalmente virou-se para o marido. Diante dele, deitado no colchão e dormindo tranquilamente, estava um recém-nascido. Um pequeno bebê de cabelos negros e olhos puxados. Tal visão despertou-lhe um turbilhão de sentimentos desencontrados, que fizeram seus olhos começarem a transbordar.

– Gabi se propôs a criá-la. – Marco contou.

Aquilo soava ainda mais irônico naquela situação. Justamente Gabrielle Angeli, com todo o seu radicalismo extremo, se propusera a criar uma criança maldita como aquela. Seria tudo pensando apenas na continuação do poder da Guardiã de Áries? Ou será que, assim como o irmão, ela havia se comovido com a aparência frágil daquele bebê?

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