Capítulo oito - Namastê!

4K 300 34
                                    

Eram sete horas quando Sofie saiu do quarto. Os Guardiões tomavam café da manhã na cozinha, com exceção de uma: a que a francesa encontrou no salão.
No chão, dentro do círculo de Áries, Hikari estava sentada, com as pernas cruzadas uma sobre a outra. Sofie foi até a filha e parou, de frente para ela.
– Já que está melhor, acho que podemos conversar.
Com a cabeça abaixada e sem ao menos olhar para a mãe, Hikari retrucou:
– Não me enche.
Irritada, Sofie começou:
– Você só me dá dor de cabeça! Não adianta falar contigo, você parece que não entende!
– E o que eu deveria entender? Que você está preocupada demais com a Guardiã de Áries?
– Hikari, até quando pretende usar essa chantagem emocional de muito mau gosto?
– Quantas vezes eu sentir que essa é a verdade, que é só com isso que você se preocupa!
– Quando você vai passar a parar pra pensar antes de fazer ou dizer alguma coisa? E mais, estou cansada desses seus ataques de...
– Você esqueceu o meu aniversário! – Hikari a interrompeu, encarando-a – Como pôde?
Sofie calou-se. Após uma pausa, a menina continuou:
– Você esqueceu o aniversário de sua única filha. O que quer que eu pense?
Sentindo seus olhos começarem a transbordar, a mestiça virou o rosto para o lado, tentando disfarçar as lágrimas. Sofie permaneceu fitando-a, com sua expressão séria de sempre. Porém, em poucos segundos um traço de tristeza instalou-se em seus olhos azuis e ela suspirou, começando a se explicar:
– Eu perdi a noção do tempo. É lógico que eu sabia que seu aniversário era essa semana, mas não me dei conta de que era ontem. Me perdoe.
As sobrancelhas de Hikari se ergueram, formando no rosto uma expressão incrédula. Ela olhou para Sofie.
– Você está me pedindo desculpas?
– Não é o que se faz quando se comete um erro?
– Não você! É raro te ver pedindo desculpas.
– Se sabe que não sou de dizer isso, pode fazer ideia do quanto é difícil para mim reconhecer que errei. Estou reconhecendo e pedindo que me perdoe.
– Tá... Tudo bem, já passou.
Sofie sentou-se no chão, diante da filha.
– Eu estive pensando... Ano que vem, quando toda essa loucura da barreira já tiver acabado, você já terá terminado o colégio... No seu aniversário, queria te levar para conhecer Paris.
Hikari piscou.
– Sério?
– Ficaremos pelo menos um mês. Quero que você conheça a minha cidade. Claro, se você quiser, podemos passar por outras cidades da Europa.
Hikari sorriu levemente.
– Que tal Roma? Queria conhecer o Coliseu.
Para surpresa da garota, Sofie correspondeu ao sorriso.
– Se formos à Itália, temos que passar por Veneza.
– Veneza? Deve ser linda!
– É a cidade mais linda do mundo.
– Conheceu meu pai em Veneza?
Sofie tornou a ficar séria.
– Hikari, não começa.
– Desculpe, não resisti. Você me parece feliz quando fala da Europa e é tão raro te ver assim.
– É a minha terra, sinto saudades. Se algum dia sair do Japão, você vai entender o que é isso.
– Acho que sim. Mas quero muito ir a Europa com você.
Sofie sorriu mais uma vez
– Tenho certeza de que vai gostar.
– Vou... Só de saber que você lá vai sorrir como agora. Acho que a Europa é a única, além de mim, que te faz sorrir.
Sofie abriu mais um leve sorriso, mas o desfez quando Hikari completou:
– Digo, acho que, em certos momentos, o Toshihiko também deve te arrancar sorrisos.
– Hikari!
– Desculpe! – Riu – Novamente, eu não resisti.
– Sei... – Ela fez uma pausa, parecendo criar coragem para dizer algo muito difícil. Baixou os olhos, fitando o chão entre elas – Joyeux anniversaire. Je t’aime à la folie.
Hikari riu. Sabia que o francês era apenas uma forma de Sofie tentar tornar aquilo mais fácil. Palavras de carinho ou meras felicitações não eram muito comuns em seu vocabulário.
– Metida! Fica esnobando porque sabe que meu francês é uma porcaria.
– O que é uma vergonha.
– Ah, nem vem! Eu conheço umas palavrinhas, tá? Do tipo... Maman, je t’aime beaucoup.
Sofie a olhou, em silêncio. Hikari riu.
– Que foi? Não falei certo?
– É, falou, sim. ...Com sotaque, mas certo. Acho que deveria fazer um curso de francês.
– Ai, mãe, não inventa. Sabe que quero aprender mandarim.
– Mandarim? Você nem tem parentes na China.
– E daí? A Anne-chan fala uma pancada de idiomas, e duvido que tenha parentes naquele monte de lugares. No Japão, pelo menos, eu sei que ela não tem.
– Tem razão. Vai aprender os idiomas que quiser.
Nisso, Hikari disparou a falar sobre os outros idiomas que gostaria de estudar; emendou os assuntos, falando sobre o colégio, os treinos, os demais Guardiões... Na maioria das vezes, Sofie apenas concordava, em alguns momentos, apenas fingia estar ouvindo, enquanto sua mente vagava em pensamentos e lembranças, principalmente relacionadas à noite anterior, ao momento em que presenciou Anne salvando Hikari. Isso, somado às observações que já havia feito da brasileira, servira para fortalecer a tese que Hayato defendia: aquela jovem não poderia ser uma impostora. Ou melhor, era certo que não era a Guardiã de Câncer, mas alguém cuidou para que todos, inclusive a própria, pensassem que fosse... Era uma farsa. Anne era apenas uma marionete, que não fazia a menor ideia de estar sendo usada. Dada a situação, Sofie estava convencida de que o certo a fazer seria manter as coisas como estavam, com todos pensando que Anne era uma Guardiã, até que chegasse o momento de lacrar a barreira que dividia os dois mundos. Então, tudo estaria resolvido e eles poderiam mandar Anne de volta ao seu país em segurança. E Sofie não via a hora disso acontecer... Livrar-se da presença daquela brasileira era tudo o que ela mais queria.
Os Guardiões, enfim, chegaram ao salão. Sofie e Hikari se levantaram do chão, indo se posicionar em seus lugares.
Como de costume, Anne foi a última a chegar, correndo, e foi direto ao círculo de Virgem, onde esbarrou em Ryan, pediu desculpas em três idiomas e acertou-se em seu lugar.
Nesta manhã, no entanto, Anne percebeu que todos a olhavam com mais curiosidade que o habitual. Somente foi entender o motivo disso quando Sofie, parecendo mais perplexa que os demais, indagou:
– O que fez com o seu cabelo?
Anne passou as mãos sobre os longos fios loiros que, diferentemente dos outros dias, estavam cacheados.
– Não tive tempo pra ajeitar. – Respondeu, timidamente.
– Ajeitar como? – Questionou Sofie, ainda perplexa.
Foi Shermmie quem respondeu, emburrada:
– Vai, Gautier, nunca ouviu falar de “chapinha”?
– Está dizendo que... – Continuou Sofie – Que ESSE é o seu cabelo NATURAL?
Anne colocou as mãos sobre os cabelos e baixou a cabeça.
– Eu também não gosto deles.
Sofie trocou um rápido olhar com Hayato, tornando a encarar Anne. Antes que dissesse mais qualquer coisa, Hikari interveio:
– Acho cabelo cacheado bonito. Sabe, quando eu era criança, ficava enrolando o meu com o dedo, tentando fazer ondinhas que nem as da minha mãe. Lembro até de um dia que eu fui ao salão, e...
– Hikari. – Interrompeu Sofie – Deixe suas histórias para mais tarde. Vamos direto ao assunto. Ontem à noite, enquanto Hayato trazia as garotas de volta à base, fui à tal boate onde minha filha resolveu, irresponsavelmente, comemorar o seu aniversário e encontrei o local interditado pela polícia. Parece que três jovens foram encontrados mortos lá. 
– Foi aquela youkai. – Indignou-se Hikari – Mas por que ela matou essas pessoas, se os alvos eram Anne-chan e eu?
– Talvez os alvos não fossem vocês. – Anunciou Sofie – Acho que, por coincidência, vocês estavam no lugar errado e na hora errada... Ou no lugar certo e na hora certa, tudo depende do ponto de vista.
– Como assim? – Indagou Maire.
– Estão tentando acelerar o processo de abertura da barreira. E há um jeito bem eficaz de fazer isso...
– Usando energia humana. – Completou Micaela, causando surpresa em todos, com exceção de Sofie, que apenas moveu a cabeça, concordando.
– Muitos youkais têm essa capacidade de absorver energia vital de seres humanos.
– Então foi por isso que fiquei tonta daquele jeito? – Indagou Hikari.
– Você teve parte de sua energia vital retirada. Deu sorte de ter sido uma parte bem pequena. – Sofie olhou para a Guardiã de Gêmeos – Micaela, percebi que está por dentro do assunto, deve saber explicar isso melhor que eu.
A loira ajeitou os óculos, antes de começar a explicar:
– A energia captada não se acumula no corpo do youkai. Através de tele-transporte, ela é enviada diretamente para o lado youkai da barreira. A energia humana acumulada numa área restrita, do lado youkai, ocasiona um desequilíbrio na energia que separa os dois mundos.
Sofie simplificou:
– Esse desequilíbrio de energia causa o enfraquecimento da barreira.
– Então temos menos de três meses? – Questionou Hikari, preocupada.
– Provavelmente sim. – Respondeu Sofie. – O que precisamos agora é tentar impedir que os youkais continuem captando energia.
– Como? – Indagou Shermmie – Isso só seria possível se soubéssemos onde eles vão atacar.
Sofie olhou para Micaela.
– Acha que pode fazer algo a respeito?
A geminiana moveu a cabeça, numa afirmação.
– Estou tentando desenvolver um programa de computador para mapear a cidade e demarcar áreas com presença de youkais. Está quase concluído.
– Então tente agilizar esse programa.
A loira, novamente, fez que sim. Sofie passou os olhos pelos demais.
– A fase de treinos acabou. Quero que se dividam em duplas e façam uma ronda pela cidade. Ao menor sinal de youki em qualquer área, entrem em contato com os demais. Hikari, vá com o Li... Shermmie com Sniper... Ryan com Eric – Shermmie levantou o braço, interrompendo Sofie – Alguma pergunta?
A morena deu um passo à frente:
– Por que eu tenho que ficar com esse idiota? – Apontou para Sniper.
Ele imitou o gesto dela, apontando para a leonina.
– Por que eu tenho que ficar com a fraquinha?
– Fraquinha é a... – Como de hábito, Mau correu para tapar a boca da amiga.
– Shermmine, olha a classe!
Irritada por ter sido chamada daquele jeito, a garota começou a resmungar, enquanto tentava se soltar do amigo brasileiro.
Ignorando aquilo, Sofie prosseguiu:
– Hayato com a... a canceriana. E Mau, com Maire.
Dessa vez foi Micaela quem se manifestou:
– O pusilânime com a Maire?
– Dá pra parar de me chamar disso daí? – Revoltou-se Mau.
Sofie tentou cortar a discussão:
– É bom vocês começarem a aprender a trabalhar em equipe, senão o trabalho será ainda mais difícil do que já é. Já estão divididos, agora decidam em que área cada dupla vai agir e vão. Parece que o tempo está esfriando, então é bom que peguem um casaco antes de sair. Têm dez minutos.
Dizendo isso, Sofie seguiu em direção ao corredor que levava aos quartos. Após sua saída, Shermmie bateu continência, ironicamente.
– Ela consegue ser mais tirana do que o meu pai.
– Tá legal... – Disse Sniper – Eu não conheço muita coisa de Tóquio. Por onde cada dupla ficará responsável?
– Eu tenho um mapa – Anunciou Hayato – Vou pegá-lo e já decidimos em que áreas vamos agir.
E ele seguiu para pegar o mapa. Micaela também se retirou, indo para o quarto. Maire a seguiu, enquanto os demais conversavam (ou apenas ouviam a tudo, como no caso de Qiang).
Estavam tão entretidos que nem perceberam quando a porta de entrada da base foi aberta.

GuardiansOnde as histórias ganham vida. Descobre agora