01. Mudanças

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Nina girou a chave na porta do seu apartamento e destravou o trinco com a mão livre. Na outra, carregava sacolas de um supermercado perto de casa. Já fazia dias que sua dispensa se encontrava em situação crítica, mas até então ela não tivera a preocupação de fazer algo a respeito. Não até receber a notícia de que sua mãe a visitaria naquela semana. Tudo o que a garota de cabelos vermelhos não precisava ouvir era o sermão monótono da velha mãe. Sua semana desgastante valera por todas as horas que faltavam para o ano acabar. Era apenas abril.

O som fúnebre de alguma melodia instrumental clássica era a música ambiente no apartamento do quarto andar em um bairro de classe média. O vizinho de cima perdera a esposa não fazia muito tempo, e a forma dele superar o grande amor era escutar uma trilha sonora diária de notas depressivas. Nina não aguentava mais aquela situação. Com um suspiro resignado, ela levou as compras à cozinha e seguiu direto para o quarto no fim do corredor escuro. Encontrou o fone de ouvido largado sobre a cama desarrumada que não tivera ânimo de ajeitar assim que acordara, e o pegou sem pestanejar, não antes de sacar o celular no bolso de trás da calça jeans. Em instantes, a música fúnebre dera lugar ao ritmo animado de Haverá de Se.

As pessoas tinham jeitos estranhos de superar o luto. Seu tio, por exemplo, nem esperara que Nina processasse a morte do pai e já pensava nas festas que iria no dia seguinte. Jacque entrou em crise ao perder o primeiro bichinho de estimação, e quando ligou para a melhor amiga, ou seja, ela, tudo o que Nina fez foi rir de nervosismo, pois não tinha vocação alguma para consolos. Talvez esse fosse o motivo por se afundar tanto nos próprios problemas. Ainda havia o cara desconhecido que ela se deparou na rua por acaso e descobriu que ele também tinha perdido recentemente o pai. Não havia luto em seus olhos, e sim a determinação de provar algo a alguém. Provavelmente ao pai, à mãe viúva ou a ele mesmo, que transformou a perda em motivação. Nina queria poder sucatear sua dor da mesma forma que o belo rapaz fizera com a dele, mas o máximo que conseguia era transformá-la numa cratera que a impedia de seguir adiante, refazendo o mesmo caminho várias e várias vezes.

Não eram nem duas da tarde e Nina se sentia exausta. Esse cansaço estranho a perseguia há muito tempo, como se algo tivesse sugado sua animação e a soltado em um lugar muito distante de si. O sono, para ela, não passava de uma válvula de escape da vida que levava, pois o tão merecido descanso que seu corpo pedia não era o que ela recebia todas as noites. A garota se jogou no sofá branco de giz e apoiou os pés na mesa de centro. Ainda ao som de Plutão Já Foi Planeta, ela pensou no quanto a decoração de seu apartamento era sem graça e abatida, o que com certeza proporcionava boa parte da negatividade em seu humor. Decidiu que precisava urgentemente mudar aquilo. As energias não circulavam na sala fria e impessoal.

Quando foi que as cores abandonaram sua vida? Aliás, quando ela usou algo que não fosse branco, preto ou cinza? Nina percebeu então que desde muito cedo sua vida era uma cartela de cores mortas e apagadas. E isso era apenas o começo. Da mesma forma que a animação repentina para mudar a decoração surgiu, ela desapareceu com a mesma intensidade. Nina não se sentia com forças para nada, nem para levantar do sofá fofo e adiantar alguns trabalhos atrasados da faculdade. O vizinho não desligaria o som fúnebre até às cinco da tarde e, até lá, Nina teria que deixar sua casa ou castigaria mais ainda os ouvidos com horas intermináveis do volume ao máximo no fone de ouvido.

Com certeza não foi aquilo que imaginara quando decidiu morar só. De fato, tinha a liberdade de ir e vir, embora a senhora do andar debaixo gostasse de monitorar a vida dos outros e espalhar para todo o prédio a hora que Nina gostava de chegar em casa nas madrugadas. O que os moradores daquele prédio tinham a ver com a vida da garota de cabelos de fogo, a própria não sabia dizer.

Nina se espreguiçou e pulou do sofá de vez, antes que desistisse do que pretendia fazer. Puxou os fones de ouvido e atirou o celular no sofá, logo a canção lenta e melancólica recomeçou e seu coração foi atingido por uma flechada dolorosa. Não iria chorar mais uma vez. Decidida, Nina rumou até o quarto com vários papéis espalhados pelo chão, uma pilha de livros sobre a escrivaninha e pegou a bolsa da faculdade atirada sobre a cadeira de acrílico rosa choque. Uma das poucas cores presentes no apartamento, graças a um de seus amigos que tentava a todo custo colorir mais o dia a dia de sua pobre amiga atormentada.

Cantiga de outro VerãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora