Rotina

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Logo na primeira semana de convivência, Daniel e Letícia chegaram à conclusão de que não seria nada fácil viver um com o outro. Letícia estava impressionada com a total falta de habilidade de Daniel pra fazer absolutamente qualquer coisa que não fosse jogar videogame e tocar violão. Ele não sabia cozinhar, não sabia limpar nada, não sabia trocar uma lâmpada e parecia nunca ter lavado um copo na vida. E, para piorar as coisas, ele era a criatura mais displicente e bagunceira de todo o mundo.

Do outro lado, Daniel se perguntava como uma garota tão jovem podia ser tão neurótica e controladora. A menina ainda nem tinha completado os dezoito anos e agia como uma adulta paranoica por colocar ordem em absolutamente tudo. Ela não suportava ver o menor indício de bagunça ou desordem. Daniel começou a observar a rotina da garota e teve certeza absoluta de que ela não era normal. Pra começar, ela passava uma parte enorme do dia na universidade. Estava pegando sete matérias, logo no primeiro semestre, e estudava como louca. Quando ela chegava em casa ao final do dia e Daniel achava que ela finalmente iria descansar um pouco, Letícia começava a organizar as coisas. O quarto dela, por exemplo, estava sempre absolutamente impecável. No armário, suas roupas estavam cuidadosamente dobradas e organizadas por cor. Quando terminava de organizar tudo e de reclamar do completo desleixo de Daniel, ela voltava a estudar.

Para o rapaz, aquela situação ficou ainda mais absurda quando ela anunciou animadamente:

– Eu consegui um estágio!

– Como é? – perguntou Daniel, enquanto enfiava um pedaço de pizza de calabresa na boca.

Eram nove horas da noite e eles estavam jantando pizza, sentados à mesa da cozinha.

– Tudo indica que vou trabalhar das sete da manhã ao meio dia, e...

– Letícia, você estuda tanto que mal tem tempo pra dormir. Sua rotina é uma loucura. Você já não tem tempo nenhum pra descansar, e agora ainda quer fazer estágio?

– Descanso é pros fracos. – ela brincou, enquanto colocava um pedaço de pizza no prato – Mas é sério, eu consigo encarar o estágio numa boa. Vou trabalhar pela manhã e estudar durante a tarde e a noite.

– Meu Deus. – murmurou Daniel. Ele não conseguia entender como é que alguém podia ser assim. Enquanto ele passava mais da metade do dia dormindo, comendo e jogando videogame, Letícia não parava um segundo sequer.

– Desse jeito, você vai ter um enfarte aos dezessete anos de idade. – advertiu Daniel. – Devia parar de levar as coisas tão a sério.

Letícia suspirou.

– É que... Você sabe, era eu quem cuidava das minhas irmãs, desde que eu tinha, sei lá, dez anos. Elas me mantinham bastante ocupada. Agora, a única coisa que eu tenho pra fazer é estudar e brigar com você. Estou me sentindo meio inútil.

– Você é inacreditável. Só digo isso. – falou Daniel, lembrando-se de que nem no final de semana ela parava pra descansar. Aos sábados e domingos, Letícia ia trabalhar como voluntária em algum lugar no fim do mundo.

– Não, você é inacreditável. – respondeu ela – Sabia que ontem eu achei uma garrafa vazia de Coca-Cola atrás do sofá? Acho que vou ter que te matricular em um curso intensivo chamado "Aprendendo a localização das lixeiras".

Daniel revirou os olhos.

– E você devia fazer um curso intensivo chamado "Aprendendo a relaxar".

– Eu sei relaxar! Tô super relaxada! Não tá vendo? – ela respondeu, ao mesmo tempo em que olhava o chão da sala e encontrava algo que ela preferia não ter visto.

– Ei, você derramou cereal no chão? – ela perguntou – De novo? Você vai limpar isso, e tem que ser agora, certo? Ah, e eu esqueci de comentar que a torneira da cozinha não está funcionando muito bem, eu tentei consertar, mas não tenho uma chave de fenda, e...

Daniel a olhou fixamente e riu sem parar durante cinco segundos.

– Viu? Eu disse. Você não consegue relaxar. Nem por um momento. Fica preocupada com tudo o tempo todo. – disse o rapaz, vencendo a discussão.

– Não é verdade. – ela murmurou, franzindo as sobrancelhas.

– Certo. Assista comigo a um filme que vai passar na tv, hoje.

– Mas eu tinha que estudar, e... – Letícia olhou para Daniel e se deu conta de que queria provar que ela não era uma paranoica obcecada por organizar as coisas e estudar.

– Tudo bem, vou assistir ao filme. – ela anunciou, decidida. Alguns minutos depois, eles estavam sentados no sofá, em frente à televisão. Letícia tentou se lembrar da última vez em que assistira tv. Não conseguiu.

– Ei, tem o Leonardo DiCaprio nesse filme! – Letícia comentou animadamente – Sou fã dele desde Titanic.

Os dois jovens estavam assistindo ao filme tranquilamente, mas não demorou muito para que Letícia tivesse a infelicidade de olhar para a mesinha de centro. Havia uma mancha escura e gosmenta grudada na superfície do móvel. Letícia sabia que existem dois tipos de pessoas no mundo: as que conseguem assistir tv tranquilamente, mesmo quando perto delas há uma mancha grudada na mesinha de centro gritando "me limpe, me limpe!", e as que não conseguem. Ela era, decididamente, o tipo de pessoa que não conseguia. Letícia começou a travar uma batalha com a mancha. "Eu não vou te limpar", pensou ela. "Você não me incomoda, mancha gosmenta. Este filme é ótimo e eu não vou parar de assisti-lo só pra me livrar de você."

Letícia mudou de posição no sofá e tentou se concentrar em olhar unicamente pro Leonardo DiCaprio. Não conseguiu. Só conseguia olhar pra sujeira grudada na mesinha. A garota sentou em cima das próprias mãos e decidiu que não iria sair dali, custe o que custar. Depois de dois minutos de pura agonia, ela desistiu. Levantou-se do sofá como um raio. Daniel achou que ela estava terrivelmente apertada pra fazer xixi, mas a garota retornou dois segundos depois, com um paninho e um produto de limpeza nas mãos. Letícia esfregou a mancha como se a vida dela dependesse daquilo. Aproveitou e limpou rapidamente todo o resto da mesinha. Ela guardou os objetos de limpeza na área de serviço, lavou cuidadosamente as mãos e voltou a sentar no sofá. Não olhou para Daniel, estava constrangida demais pra isso. A garota sabia que ele a estava encarando e ficou extremamente frustrada com si mesma.

– Nossa. Seu caso é sério. – disse Daniel, pasmo. Ele ia fazer alguma piada ou zoar a compulsão maluca dela, mas reparou que ela estava vermelha e não queria que ela ficasse chateada.

– Letícia... Desculpe por ter sujado a mesa. – falou o rapaz, tentando ser o mais cauteloso possível. Letícia finalmente parou de olhar a televisão e voltou o rosto para ele. Ela o olhou em silêncio durante alguns segundos.

– Você tem razão, eu não consigo relaxar. Isso é uma droga. – ela desabafou, enterrando o rosto nas mãos por um segundo.

– Eu odeio essa situação. Isso é ridículo, nós parecemos um casal divorciado que ainda mora na mesma casa, e eu estou fazendo o papel da dona de casa rabugenta, neurótica e com mania de limpeza.

– E eu?

– Você o quê?

– Se nós somos um casal divorciado e você é a dona de casa neurótica, qual é o meu papel?

– Você é o marido folgado e preguiçoso, que passa os dias deitado no sofá comendo coxas de frango com a mão.

– Tipo o Homer Simpson?

– É, tipo o Homer. – ela concordou, rindo.

– Que tal se a gente tentasse ser mais normal? Eu vou tentar ser menos vagabundo e você tenta ter menos pilhada. – propôs Daniel.

– Tudo bem. Trato feito. – a garota assentiu.

Eles apertaram as mãos solenemente.

– Mas já vou avisando que se você continuar escondendo garrafas de Coca-Cola atrás do sofá, eu te mato. Vamos assistir ao filme, antes que acabe.

Sob o Mesmo TetoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora