A caminho

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Daniel olhou para Letícia, que estava sentada no banco ao lado dele, com o rosto voltado para a janela. Parecia um pouco nervosa. Provavelmente, nunca tinha viajado de avião antes. Daniel se perguntou no que ela estava pensando naquele momento, no que estava por trás daquele olhar fixo nas nuvens.

— O que você vai cursar, mesmo? — ele tentou quebrar o longo silêncio que reinara até o momento.

— Serviço social. — Ela nem sequer tirou os olhos da janela.

— Ah, sim. O curso de distribuidora de cesta básica — ele ironizou. 

A garota revirou os olhos e tentou ignorar a provocação, mas Daniel continuou falando: 

— Você tirou uma nota absurdamente alta no Enem. Poderia ter escolhido qualquer curso: medicina, direito, relações internacionais... Foi escolher logo esse treco. Aposto que nem dá dinheiro. É cada uma... A senhorita Letícia-gênio cursando serviço social. Que desperdício de inteligência.

— Bem, eu escolhi esse curso porque é o que eu quero fazer, não porque o meu papaizinho me obrigou — a garota o alfinetou, irritada.

Ela sabia que Daniel só tinha escolhido administração por pressão do pai, que era dono de uma imobiliária e achava fundamental que o filho trabalhasse naquele empreendimento futuramente.

— Calma, bebê. Eu só tava zoando. Acho que esse seu tom de voz agressivo é só uma tentativa de disfarçar que você está adorando a ideia de morar comigo.

Ela riu e finalmente fincou os olhos nele.

— Você não faz ideia do quanto... — respondeu, com o tom de voz escorrendo ironia.

Letícia odiava ter que passar por aquela situação, mas não havia outro jeito. Ela queria mesmo estudar na Universidade de Brasília, então teria que encarar morar com aquele indivíduo. A garota começou a pensar no quanto fora difícil se despedir da mãe e das duas irmãs.

Malu era a caçula, de sete anos. A irmã do meio se chamava Gabriela, tinha doze anos e uma personalidade bastante explosiva. Ser filha mais velha era uma tarefa complicada, pelo menos para Letícia. Ela só tinha dez anos quando o pai sofreu um acidente de carro enquanto dirigia indo para o trabalho. Na época, a mãe dela estava grávida de Malu e começou a trabalhar como louca para conseguir sustentar as três filhas. O resultado: Lúcia nunca estava em casa com as meninas. Era Letícia quem tinha que cuidar das irmãs, arrumar a casa e manter tudo sob controle. Agora que estava se separando da família, finalmente teria um tempo pra si mesma.

Curiosamente, "ter um tempo para si mesma" não era algo que a animava muito.

Letícia também se lembrou, mais uma vez, de como tinha sido se despedir da mãe de Daniel.

— Letícia, eu sei que, às vezes, o Daniel pode ser meio bobo, mas ele é um bom menino. Tenho certeza de que você vai perceber isso — Verônica dissera na ocasião. — Vou te confessar que eu não fui, exatamente, um exemplo de mãe pra ele. Eu não o ensinei a se virar sozinho. Acredita que ele tem medo de trovão até hoje? Então, eu queria te fazer um pedido, de coração: cuida dele pra mim.

Aquela conversa com Verônica tinha sido muito estranha, e de certa forma modificou um pouco a imagem que a garota tinha do rapaz. Para Letícia, Daniel sempre tinha passado a impressão de ser um cara arrogante, autoconfiante em excesso, irresponsável e, principalmente, bastante egoísta. Talvez ele não fosse exatamente do jeito que ela imaginava, afinal.

— No que você está pensando? — perguntou ele de repente.

— Isso é normal? Não estou gostando dessa turbulência — afirmou a garota. Era a primeira vez que viajava de avião.

— Isso se chama aterrissagem, relaxa — respondeu o rapaz, rindo.

Sob o Mesmo TetoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora