Ponte para o abismo.

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"Minha mãe dizia que não há acessório mais importante que um bom sorriso, sabia?

— Mesmo quando as coisas estão ruins?

Especialmente quando as coisas estão ruins. Você quer que pensem que está no controle, mesmo quando não está."


O início da manhã era o momento perfeito para ir ao orfanato: a luz solar natural rarefeita em Obumbratio fazia falta, especialmente em ambientes cheios como aquele, então usar as três horas de claridade era o ideal, em especial para aqueles que não queriam uma visita surpresa dos Volgermann, quando estavam patrulhando — o que acontecia raramente, mas ainda era uma possibilidade.

Porém, Caim Lewandowski estava na contramão de todos os outros, e escolheu justamente o cair do Sol para realizar seu ato de caridade, parando a carruagem e sendo recebido com diversos abraços animados das crianças por quem ele mal conseguia sentir algo. Ele deveria estar com as malas arrumadas, à caminho do palácio onde passaria os próximos meses, com uma série de pessoas desconhecidas, em uma última tentativa desesperada para reaver um poder sobre sua vida que, realmente, nunca teve. Ao invés disso estava ali, distribuindo alimentos, roupas e brinquedos.

O lugar em si não era desconhecido para ele, e Caim já estava acostumado a ter como visão a casa humilde de paredes amarelas com a grande porta de madeira, com uma cerca enorme no jardim onde as crianças corriam para lá e pra cá, mas se pudesse nunca mais colocava os pés ali, e o estava fazendo mesmo assim, como a vida pode ser irônica.

Havia alguns motivos pelos quais fazia isso, e nenhum deles era a bondade de seu coração, porém, o maior deles era definitivamente o desespero. Ele tinha a esperança de que, no dia anterior ao início do cortejo, os Volgermann estivessem fazendo uma patrulha e o encontrassem ali, sendo uma pessoa gentil e bondosa, que até mesmo antes de ser confinado em um castelo, pensou no bem estar de pessoas menos afortunadas. Tudo friamente calculado, para que ele se destacasse antes mesmo da corrida começar, talvez despertando um interesse genuíno de um de seus alvos e, senão eles, qualquer um dos outros irmãos serviria para seu propósito.

Quando ouviu passos atrás de si, respirou fundo, controlando os batimentos para que se mantivessem calmos, como estariam se ele de fato estivesse focado em sua tarefa e não esperando ansiosamente por uma plateia.

— Eles parecem gostar de sua presença. — A voz atrás de si fez com que a expressão de Caim se fechasse no mesmo instante, e ele agradeceu por não estar sendo visto naquele momento, já que teve tempo o suficiente para se recompor e dar seu melhor sorriso antes de se virar para o vampiro, que tinha uma espécie de rifle na mão, vestido como um militar.

Não foi a roupa ou a arma que incomodou Caim, pelo contrário, esse tipo de coisa já era comum de ser vista por Obumbratio e nem mesmo as crianças tinham aversão àquela visão: elas corriam e brincavam em torno do Volgermann, sorridentes e inabaladas, visto que todos sabiam que os vampiros eram mais perigosos do que a roupa ou seu armamento.

Porém, de todos os irmãos que poderiam aparecer e apreciar seu teatro, aquele era o último deles: Aart Volgermann.

Uma série de razões o fazia desgostar de Aart, particularmente, e eram as mesmas razões pelas quais ele era "amado", pelo menos o máximo que um vampiro pode ser amado: o fato de que mesmo sendo um dos mais velhos entre os Volgermann, ele ainda amava a humanidade de forma pura, e acreditava em seu bem primordial; o fato de dedicar seu chamado à medicina mesmo que não precise mais exercer a função após se tornar um Volgermann; o fato de ter uma bondade genuína e ajudar os outros de forma indiscriminada. Qualquer um que escutasse os pensamentos de Caim naquele momento, o chamaria de amargo, até mesmo o dirigiria uma feição enojada, o odiando por ousar descrever tais qualidades como motivo para odiar um homem, não, um vampiro tão íntegro.

Sanguinis PetalaWhere stories live. Discover now